Meu pai é o Macgyver (Escritas do Cotidiano # 16)


Maykon Souza*

Às vezes, tenho a impressão de que não se fazem mais pais como antigamente. Não que o meu seja exemplo para alguma coisa, mas se hoje tenho alguma facilidade para rir, é mérito dele que me chamava atenção para o ridículo das coisas, ainda que, na maioria das vezes, o ridículo fosse ele. Ou eu.

Se ele estivesse ingressando no mundo dos pais agora, com Conselho Tutelar e programas da GNT a todo vapor, seus métodos pouco ortodoxos de divertimento talvez não fossem bem vistos pela vizinhança. Mas, justiça seja feita: tirando a vez em que ele viabilizou – quero acreditar que involuntariamente – o meu primeiro gole de cachaça antes dos cinco anos, só cometia pecadinhos sem grande repercussão.

Foi me buscar mais cedo na escola uma vez. Com dor de barriga, eu queria apenas privada e cama. Qual a graça de curar uma dor de barriga em lugares confortáveis e caretas? Dez minutos depois, estávamos na praia, subindo e descendo pedras, catando conchinhas do mar. Lembro que eu chorava e deixava um rastro na areia da praia, enquanto ele se lamentava por não ter trazido a bola de futebol.

Se fosse hoje, daria merda. Nos anos 80, isso não era nada. É só olhar os vídeos da Xuxa no começo da carreira. Fica claro que os baixinhos estavam em baixa. Hoje, ele seria uma espécie de pai-raiz num mundo de pais-Nutella.

Às vezes, montava uma cabana na sala e fingia que não estava em casa, a campainha tocando sem parar. Sussurrava pra mim que, ao menor sinal de presença humana, um urso faminto que estava na guarita do prédio acabaria com nossas barracas e faria picadinho da gente. Um dia, vi o urso indo embora: roupa social, pastinha embaixo do braço. Cara de quem trazia problemas.

Meu pai sempre acreditou piamente que era capaz de consertar tudo. Nada ficava em ordem depois da sua passagem. Culpa do Macgyver, aquele maluco que derrubava um prédio com sal e limão e desarmava bombas com grampos de cabelo. Para o meu pai, um preguinho e um rolo de fita isolante eram o suficiente para quase tudo. Jura que se estivesse com prego e fita isolante naquele dia da praia, tinha curado minha dor de barriga.

O velho foi uma espécie de Rodrigo Hilbert dos anos 80. Faça você mesmo. Meu sonho de infância era ter um vídeo cassete. Ele dizia que não podia comprar, mas que daria um jeito. Já me pegava imaginando como ele fabricaria um vídeo cassete com pregos e fita isolante, quando ele entrou em casa e anunciou: “Hoje, vamos ver o ET”.

O esquema era mais ou menos o seguinte: com o devido consentimento das partes envolvidas, um fio saia do vídeo cassete do nosso vizinho de porta, atravessava todo o corredor de cerca de cinco metros, e se conectava na nossa TV colorida de 24 polegadas. Assim, quando o vizinho apertava play, a luzinha no dedo do ET acendia e a criançada gritava alucinada. Era o primórdio dos gatos televisivos.

Tínhamos um acordo não-declarado, mas que respeitávamos: cada família tinha direito a uma parada. Como um pedido de tempo no vôlei. Bastava gritar pela janela “Banheeeeeeeiro”. Filhos corriam para o xixi e pais para a janela, comentando o filme. Se você já tivesse pedido banheiro uma vez e recebesse um novo chamado da natureza, tinha de torcer para a solicitação do vizinho não demorar muito. Sair da frente da TV não era uma opção.

Almocei com ele ontem para comemorar o Dia dos Pais. O velho está firme e forte. Agora é um cara sério. Foi encaretando. Trocou o prego e a fita isolante pelo Novo Testamento e se diverte com uma assinatura de TV a cabo, plano básico. Diz que exagero nas histórias, mas sempre dá uma risadinha. Quer esconder o passado comprometedor


Nada me tira da cabeça que, numa daquelas vezes em que ficou olhando o mar, sem falar nada, estava lembrando seu passado de Macgyver e torcendo para ouvir a voz do vizinho na janela pedindo uma parada para o banheiro.

* Crônica que nasceu do módulo Escritas do Cotidiano, do curso de Formação de Escritores, da Prefeitura de Santos. 

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