O cachorro que não tinha olhos




Silvia Maritani

Estou tentando ser sincera sobre esse texto e o que realmente ocorreu há dias. Acontece que participei de uma oficina de crônicas, e uma das atividades seria escrever uma crônica sobre um personagem do cotidiano. Muito fácil, eu já tinha pronto, a história do Otávio, morador de rua que eu vira em um bar chamado Bico Doce, que fica na avenida Conselheiro Nébias. Aconteceu que eu decidi pensar mais sobre isso, porque tinha vontade de escrever algo novo.

Quando estava indo ao trabalho a pé, como todas as manhãs de segunda à sábado, vi uma turma de adultos com seus cachorros. Sempre vejo algo assim, a hora da manhã parece ser a melhor para passear com os bichinhos, como também a hora da noite, que é coincidentemente a hora que estou voltando para casa. 

Fosse por um piscar de segundo, eu não teria visto a diferença daquele grupo para todos os outros. Ali, farejando para cima e recebendo carinho de várias pessoas que ele tentava reconhecer pelo olfato, estava um cachorro sem olhos

Suas pálpebras, grudadas umas nas outras, davam a impressão de que ele estava fechando os olhos com força, mas a grande verdade é que lá não havia olhos. E ele era lindo. Pelos dourados, médio porte, uma cara de quem apronta o tempo inteiro, mas não tinha olhos.

Curiosa que sou, fui pesquisar e descobri o nome de uma anomalia genética: anaphtalmia. Animais poderiam nascer sem os olhos. Não pude conter o impulso de pesquisar se em seres humanos isso também poderia ocorrer. 

O cachorro era lindo, mas nunca vi nenhuma pessoa que faltasse os olhos. Me assustei com as imagens que apareceram. Diferente da reação que tive ao cachorrinho, as pessoas sem olhos me causaram incômodo e aflição.

Corri para escrever sobre o fato em que me apeguei: para os seres humanos com anaphtalmia, existe uma operação que se faz ainda bebê, para colocar uma prótese de vidro. Tal prótese teria que ser trocada em dois anos por uma nova. Essa prótese não ajudava a enxergar, era puramente estética. 

Pronto, toda a minha viagem foi reduzida a uma cirurgia invasiva e puramente estética. Criei um texto em que criticava isso. Tentei dizer, deixando na mão do leitor, que os seres humanos precisavam se aceitar mais com suas diferenças, assim como aceitamos os animais e como eles mesmo se aceitam, mas não posso ser hipócrita.

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