O que arde (Escritas do Cotidiano # 8)


Carlos Roque* 

Uma pequena vila operária, isolada entre montanhas, o que permitia que todos soubessem de todos e todos trouxessem na mochila uma opinião sobre os demais. A criançada não tinha nome, eram muitos e eram conhecidas e chamadas de filho ou filha de sicrano e beltrana. Eu era o filho do meio da Dona Mirinha.

Era a opinião geral que Rita era um verdadeiro capeta e que nunca tinham conhecido uma menina tão malandra e arteira. Tudo que acontecia na vila, sabiam que tinha ao menos um dedinho mindinho da Rita envolvido.

Por outro lado, a fraqueza com a bebida do Seu Ari 
era mais conhecida que nota de dois cruzados. Ele era aposentado da empresa e, por ter sido um excelente funcionário por quase 40 anos, teve autorização para continuar ocupando uma das casas da vila. 

Dona Isabel já havia implorado no bar, na mercearia e na quitanda, que não vendessem cachaça para ele, mas a lei do mercado é muito mais forte do que qualquer súplica.  Encontrar Seu Ari caído pelas ruas de paralelepípedos não era surpresa para ninguém.

Quando encontrado por uma boa alma, ele era carregado com certa facilidade, pela fragilidade do corpo, para casa e para os cuidados incessantes de Dona Isabel, que se acabava de xingar os donos do comércio local. Para o marido, eram reservados apenas caldos e carinhos.

A sorte presente não dura para sempre e um dia, voltando do centro da cidade, Rita encontrou o Seu Ari caído sobre um pequeno muro, com o corpo pendendo para cada lado. Talvez tenha sido a posição do corpo que fez aquela cabecinha, coberta pelo sono despertar para a maldade, se lembrar que cu de bêbado não tem dono.

Correu até a sua casa e voltou bem rápido. Sem pestanejar, abaixou um pouco as calças dele e sapecou o ânus do coitado com um pouco de pimenta, quebrou um ovo e deixou a clara escorrer entre as nádegas do pobre velho e foi para casa, tomar banho e café.

Sentou-se na varanda e ficou na penumbra, de olho na vítima da vez.

Depois de mais ou menos uma hora, Seu Ari acordou no ritmo cambaleante típico depois de uma boa carraspana. Quando conseguiu se por de pé, suas calças escorreram de vez pelas canelas finas, arrastando a cueca puída. Nisso, incomodado com a ardência, passou a mão na bunda branca e ao vê-la inundada por aquela meleca esbranquiçada, não teve dúvida e começou a gritar, acordando o domingo.

— Comeram o meu cu! Puta que pariu, alguém me enrabou!

Segurando as calças, que não conseguiam prender o cinto, Seu Ari andou por quase todas as ruas da vila e na pracinha da igreja, anunciando o terrível ato que acreditava ter sido vítima.

Rita não cantou vitória, talvez tenha percebido que desta vez tinha passado do limite.  Ninguém aventou que ela poderia estar envolvida em tão humilhante episódio. As possibilidades levantadas eram muitas, mas sempre ditas entre os dentes, para não aumentar a confusão.

Não demorou muito, ele e Dona Isabel mudaram-se para o centro da cidade.

Rita mudou pouco e casou com o filho do meio do Seu Roque.

A morte também é um acontecimento de união e, no dia do enterro do Seu Ari, a vila toda foi ao cemitério.

Na beira do caixão, Dona Isabel estava com uma cara descansada, poderia até dizer que estava mais nova do que quando saiu da vila. Rita se aproximou para cumprimentá-la e ganhou o mais carinhoso dos abraços e ao pé de ouvido, num discreto sorriso, disse:
— Muito obrigado, muito obrigado por você ser você!

Rita se afastou um pouco e Dona Isabel continuou, com muita leveza na voz.

— Eu vi o que você fez com o meu Ari.

Rita tentou se afastar ainda mais, mas foi contida. 

– Te agradeço muito –, mergulhando nos olhos de Rita.

— Claro que ele ficou abalado, mas depois daquele dia a nossa vida mudou por completo. Parou de beber e pude viver com este homem maravilhoso com tranquilidade e paz –, pousando a mão sobre as mãos cruzadas do amado defunto e completou, trocando as mãos frias, pelas mãos quentes da Rita em um forte aperto. 

— Se não fosse você, meu anjo, estes dez anos não teriam sido os melhores da minha vida e do meu casamento! Redobrando o aperto, no vermelho das mãos.

— O Seu Ari...

— Sim, contei para ele a verdade apenas na semana passada, quando já estava internado. Disse que chegou a pensar em você, mas achou melhor esquecer tudo e viver.

— O Seu Ari ...

—Não se preocupe, minha filha, ele estava muito cansado, mas mesmo assim pediu para te dar este abraço.

Ninguém mais entendeu, aquelas duas mulheres gargalhando abraçadas, no eco seco da pequena capela.

* Crônica que nasceu do módulo Escritas do Cotidiano, do curso de Formação de Escritores, da Prefeitura de Santos. 


Comentários

Unknown disse…
prendeu minha atenção até o final... muito bem escrito, gostei bastante
Unknown disse…
Muito bom, me prendeu a atenção, prato de ser pelo que entendi no bairro da fabril.
Gostei muito, parabéns....