O cemitério dos vivos (De Profundis # 3)


Marcus Vinicius Batista

Vivo em um cemitério. Nele, não vive somente quem morreu. Ali, descansam as ideias, jazem os sonhos, repousam os desejos, desencarnam os idealismos. Em volta deles, vagam as desilusões, flutuam as invejas, assombram os provincianismos, sempre velados pelas referências autoelogiosas, pelas trocas de sorrisos desdentados dos mortos-vivos.

Os mortos são os menos culpados das dores que os cercam. Eles não metem medo, não incomodam, seguem suas próprias vidas, não se intrometem no que acontece além de seus jazigos. Suas sepulturas não marcam em pedra seus passados balizados por duas datas. Suas sepulturas os protegem dos vivos.

Gostaria tanto de conversar com os mortos. Construo diálogos sofisticados com a sabedoria de quem se foi e aprendeu com a mudança. Imagino uma nova biografia sem as prisões do espaço, do tempo, das convenções, dos teatros que os transformaram em bonecos produtivos, agarrados em personagens com títulos de nobreza.

No cemitério onde vivo, os muros são seletivos. São transparentes para os mortos. São muralhas com fossos profundos para os vivos. Caminho por entre as lápides, procurando um mirante, enquanto respiro as histórias dos espíritos hoje reduzidas a causos singelos, sem as gorduras de um roteiro de principiante.

Quando avisto um vivo, tento me esconder atrás ou dentro de um mausoléu, na torcida que marca os braços com os dedos enrijecidos. Torcendo para que nenhum outro vivo errante escolha se abrigar no mesmo endereço.

Não tenho a dádiva de poder me fingir de morto. Preciso encarar o outro, no mínimo, como se estivesse em seu próprio velório. Procuro crer que ele já morreu e ainda não foi informado por sabe-se lá qual repartição de outro plano. A mentira me ajuda a sobreviver mais um dia, a mais um incidente.

Aprendi que não tenho habilidades ou coragem para saltar os muros do cemitério. Lá fora, a ilusão de que talvez haja mais luminosidade ou talvez que a luz se cerque de uma pureza ingênua, desconhecida, quase infantil. Morro de medo de quebrar mais uma fantasia. No cemitério, entre os vivos, as fantasias se decompõem e tendem a feder como o próprio chorume de quem entende que o olfato virou supérfluo. Quanto mais perto da morte, maior o cinismo que camufla o pavor da solidão.

O cemitério dos vivos me ensinou a ouvir o silêncio dos mortos. Eles sempre falam, cientes de que não há garantias de quem os ouça. Eles conversam animadamente entre si, conscientes de que as orelhas viraram acessórios de decoração entre as pessoas que não os enxergam.

Ouvir os mortos é vê-los como são, em seu estado primitivo, no sentido mais próximo da essência que venderam em liquidação em tempos de vida física. A caveira que ostentam acaba por demolir qualquer ostentação por aparência.

Não tenho medo dos mortos. Tenho medo de que não possa conviver com eles, por quaisquer razões que livros, profetas, charlatães ou escrituras desconhecem. Fico apavorado, por contradição, só com a possibilidade de poder conviver com eles, de absorver seus rastros, de entender seus códigos mais simples, de não pertencer. Nunca estamos preparados para a morte ou nunca estamos preparados para nos vermos finitos, pequenos e comuns?

O cemitério dos vivos agoniza seus frequentadores. Andamos juntos em discordância. Arrastamos os pés em nome de metas mal traçadas, provavelmente limitadas sem que saibamos onde a fronteira da vida nos travará. Olhamos para frente, mas ignoramos acima e atrás de nós. Olhamos para frente na fé em torno de algo que não existe, pois haverá os muros a nos brecar, a nos avisar quanto somos falíveis, quanto somos mesquinhos, quanto somos filhos do provincianismo e netos daqueles que sonham, e não fazem, só reclamam.

Esses dias, aproveitei uma distração dos vivos que me vigiam e consegui subir no alto de um mausoléu. Vi, na ponta dos pés, por cima do muro. Havia vida lá fora, constatei o óbvio, e percebi que não conseguia construir no horizonte uma separação clara. Quem estava vivo? Quem estava morto? Todos se misturavam, todos conviviam. Todos eram indiferentes a mim.

Não pude fazer mais perguntas em silêncio. Sentia a vibração na laje. Os vivos do lá de cá se aproximavam. Andavam como mortos, farejaram minha transgressão como dependentes de carne podre, tateavam a proximidade de minha alma como fantasmas de olhos invertidos.

Os vivos, meus vizinhos, nunca se deram conta de sua condição, muito menos de que o cemitério estava em volta deles.


Comentários

Unknown disse…
Brilhante reflexão!