Eles nunca comeram chantilly (Escritas do Cotidiano # 6)


Ruth Fortes*

Alex, meu sobrinho, é a pessoa mais afetiva, mais pacífica, mais ingênua e idealista que eu conheço. É músico, cria composições eruditas, toca piano, acordeão e é autodidata em quase tudo o que conhece. Não sabe muito bem o que quer,  mas tem absoluta certeza de tudo o que não quer, e é impossível convencê-lo de que deva fazer algo que esteja inscrito na sua listinha de indesejáveis.

Vive fazendo apresentações de graça, porque tem tanto prazer em tocar, que acha um absurdo cobrar por aqueles momentos tão gratificantes. Leva seu acordeão para a rua e se empenha como se estivesse no Carnegie Hall lotado.

Por conta de seu temperamento e por ser incorruptível nas suas crenças, é fácil imaginar que, com 27 anos, ele nunca tenha dinheiro na mão e viva feliz da vida, em aproveitar apenas as atividades gratuitas da cidade ou passear com amigos, meio sem destino certo.

Num dia desses, voltando sozinho de um rolê, como ele define suas saídas noturnas, foi abordado por três rapazes, que bloquearam sua passagem pela calçada, jogando seu vistoso veículo sobre o passeio público.

Os meninos meio nervosos anunciaram o assalto. Alex nem se preocupou muito. Só tinha nos bolsos as moedas para voltar de ônibus para casa e um celular velho, que usa apenas para telefonar e, ainda assim, em emergências ou em fins de semana. Além disto, os rapazes estavam muito bem vestidos, com roupas de grifes conhecidas e pareciam ser o que todos consideram “bem-nascidos”.

A pobreza do menino, entretanto, irritou os filhinhos de papai que estavam montados num carro grande, novo, chamativo e precisavam de uma noite diferente naquele sábado, talvez de alegrias e farras rotineiras.

Imediatamente, o chefe do bando aplicou, com toda a força de que era capaz, um imenso soco em Alex, que na mesma hora foi jogado no chão, tornando-se alvo fácil para que fosse surrado, com inúmeros chutes e pontapés, a maioria no rosto.

Após saciar-se com sua perversidade, o monstro urbano, líder da gangue, quis evitar que ele e seus amigos tivessem algum problema. Assim, já satisfeito com sua inegável demonstração de coragem, ousadia e macheza sem igual, foi embora gargalhando, acompanhado de seus capangas, todos bem felizes, com a cena de filme de terror.

Alex, todo ensanguentado, tonto, cheio de dores pelo corpo e, especialmente na boca e queixo, não conseguia se levantar, permanecendo no chão por muito tempo, sem entender o que tinha acontecido.

A madrugada ia longe, poucas pessoas na rua, quando apareceu um anjo para salvá-lo. Era um mendigo, que chorou ao ver o estado em que os agressores deixaram Alex. Ajudou-o a se levantar e perguntou o que poderia fazer por ele. Alex limitou-se a dizer que pegaria um táxi para ir para casa, com pagamento no destino. O mendigo levou-o até a avenida e o colocou no carro. Grato, Alex deu suas moedas e seguiu em frente. Os dois entreolharam-se com compaixão.

Depois de parar em casa, Alex foi direto ao hospital, onde foram constatadas três graves fraturas no maxilar, que deslocaram seu queixo e boca para acima do nariz, tornando sua aparência desagradável e assustadora. Apesar de tudo, comemorou porque não foram afetadas suas mãos e poderia voltar a tocar.

O tratamento foi longo e dolorido, Alex passou vários meses se alimentando apenas com líquidos, já que, apesar da contenção bucal, não conseguia mastigar. Chorou no dia em que percebeu que não tinha condições de comer uma paçoca, mas ficou feliz com a imensa quantidade de chantilly (sua tara gastronômica desde bem pequeno) que podia consumir.

Experimentou dores lancinantes. Mas o que mais doía em Alex era perceber que os amigos que o visitavam surpreendiam-se ao saber que ele não havia reagido. Descreviam em detalhes o que teriam feito com a corja e olhavam para Alex como se estivessem diante de um covarde. Nos primeiros dias, Alex tentava justificar-se. Sempre entendeu que “violência gera violência”, mero bordão que, para estes amigos, não passava de frase feita e, muito mal feita, na verdade.

Estive com Alex nestes dias de sofrimento. Sempre soube que Alex era bem diferente e que com certeza escapou da maldição do individualismo, considerado a tônica de sua geração.

Terminado o extenso tratamento bucal, Alex desenvolveu compreensivelmente ainda crises de pânico, sem conseguir sair à rua por bastante tempo. Tratou-se também desse mal. Como não conseguia falar direito, perdeu seu emprego de professor de música em escolas. Sua vida ficou estagnada por mais de um ano.

Agora está bem. E muito embora seja difícil de acreditar, estou certa de que ele nunca sentiu raiva de seus agressores.

Como fazemos pelo menos uma vez por mês, hoje almoçamos juntos e ainda comentamos o fato. E tive o imenso prazer de ouvir dele a explicação para o que teria levado aquela trinca a fazer o que fez: “Tia, tenho muita pena daqueles três rapazes. Acho que eles não tiveram a chance de comer chantilly, quando crianças”.

* Crônica produzida durante o módulo Escritas do Cotidiano, do curso de Formação de Escritores, da Prefeitura de Santos.


Comentários

Anônimo disse…
Sensibilizada pela maneira com que foi descrita a ingênua bondade desse ser pacífico e raro (nos tempos atuais) que é a figura principal do conto. Adorei.
Marta Leon disse…
Lindo! Lindo demais o rapaz Alex, Ser iluminado que perambula pela Terra para nos mostrar q existe a vivência real do Amor. E linda a autora da crônica, cuja sensibilidade e evidente vivência amorosa nos permitiu saber da existência real de um anjo na Terra.
Andre Argolo disse…
É fortíssima a história, Ruth! E suas escolhas para contá-la foram justas com ela, foram fortes como a própria história. Obrigado por esse texto, muitíssimo importante.
Anônimo disse…
É muito interessante poder observar a criatividade e a capacidade de algumas pessoas de verter para a escrita o sentimento alojado no próprio EU. Parabéns Ruth,suas palavras se agrupam numa cronica viva e sensível e muito agradável de ler e notar que devem existir pessoas boas no nosso mundo.
Ivanalopez disse…
Adorei esse conto que nos apresenta um ser humano positivo até o final; de uma personalidade tão forte que não se deixa modificar pelo externo. E a forma como a escritora nos conduz em toda a crônica é natural e clara.