Adeus, Brasil



Beth Soares

Hoje acordei com um soco no estômago. Uma dor de cabeça insistente me fez permanecer na cama por mais tempo. Agora percebo que talvez fosse o prelúdio do que eu veria dali a instantes. Ontem eu soube que o Programa Mais Médicos deixaria de atuar no Brasil, por conta das declarações do eleito. Desisti de adjetivar a palavra “declarações”, porque nenhum adjetivo traduz com exatidão o que eu penso sobre o que ele fala, assim como mais nenhum é capaz de definir o que eu penso do próprio. 

O fato é que fiquei profundamente incomodada. De um jeito que detesto estar. Então, passei o dia tentando não pensar nisso. Assim que li a notícia pela primeira vez, levantei-me da minha cadeira, no trabalho, e fui conversar com uma colega, a Silvana, uma portuguesa de Guimarães, sobre uma cidade linda na terra dela chamada Aveiro, na qual descobri haver um curso de edição de livros, que se tornou meu mais novo sonho. Aquela era a maneira de fugir da minha atual realidade. Era também a tradução do meu desejo de escapar do meu país. É triste, mas eu nunca desejei tanto estar fora dele. E ao mesmo tempo, acho um absurdo eu ter que fazer isso. Esse é um pensamento contraditório constante que ultimamente tem mexido demais comigo. 

Meu país me deu tudo que tenho: minha família, meus amigos, meus três trabalhos: um emprego público, um trabalho autônomo e uma empresa microscópica, que tem realizado sonhos meus e do meu marido.

Hoje, ainda deitada na cama, peguei o celular para olhar as horas, mas um aviso com o “F” da rede social com a qual tenho uma relação de amor e ódio, me seduziu novamente. Cliquei nele, vi a tela abrir, e a primeira publicação que pulou na minha cara era de uma aluna do Marcus, a Luna. Nela, um grupo de imagens. Não havia legenda, apenas um emoji chorando. Abri e vi que eram fotos do talentoso Araquém Alcântara. Nas imagens, médicos cubanos em contato com a população de um Brasil que poucos na minha cidade conhecem. Poucos médicos da minha cidade conhecem. Médicos de uma cidade privilegiada, que chegou a fazer propaganda por ser a número um em qualidade de vida. Uma cidade que ignora os 2% de sua população, que não têm acesso a esgoto, água tratada... saneamento que deveria ser básico. Mas não é para esses 2%. Parece pouco para você, mas para a mãe que vê seu bebê morrer de diarreia em 2018, é tudo.

A última imagem era de uma menina olhando para um médico. Os olhos dela brilhavam. Chorei copiosamente.


Ontem, falei para o Marcus, em mais uma de nossas conversas noturnas (é o momento que temos para papear e resistir ao cotidiano esmagador de trabalhadores com 3 empregos), que eu poderia ter escolhido fazer medicina ao invés de jornalismo. Ele disse que isso não teria me feito feliz. Eu sabia disso, mas precisei pôr para fora esse pensamento, porque o assunto “Mais Médicos” me perseguiu o tempo todo, inclusive durante o nosso almoço num restaurante do Centro, que teve como trilha sonora um programa de TV que insistia em debater, de maneira superficial, quase jocosa, o assunto.

Olhei para a imagem da menina que olhava para o médico. Eu havia me colocado, desde o dia anterior, no lugar dos médicos, porque esse é o lado que estou hoje, como assistente social, jornalista e tantos outros papeis sociais que desempenho como profissional. Mas ali, naquela hora, eu tive que lidar com uma possibilidade da qual eu estava fugindo há mais de 24 horas. Eu poderia ser aquela menina.

Eu tenho fugido o quanto posso desse meu lado, porque isso me traz sofrimento. Eu não quero ser assistente social, jornalista, profissional dos direitos humanos. Não quero mais dar voz à dor humana. Não quero fazer esse papel. Quero me distanciar de tudo isso, quero fazer meu trabalho burocrático de segunda a sexta, e deixar na seção aquelas histórias de milhares de cidadãos que ainda precisam do Estado para se manterem vivos. Quero não pensar que quando deixo de atender uma mulher que me pede uma dica de consultoria de beleza, seja por falta de tempo ou por exaustão de força física e psicológica, eu deixo de oferecer a ela, talvez, a única fonte de autoestima que ela tenha na vida. Eu quero desistir das pessoas. Mas eu não consigo. Talvez porque, no fundo, a dor de querer desistir é muito maior do que a dor de resistir.

Eu sou aquela menina olhando para o médico. Eu sou uma criança deitada no chão de terra batida, que o Araquém Alcântara captou com tanta sensibilidade. Eu sou o canoeiro que sofre levando o médico embora da aldeia ribeirinha. Porque sou eu quem fica. Sou eu que vejo as pessoas e esperanças indo embora. E é por isso que eu quero desesperadamente trocar de papel e ir embora também.


Mas saiba que, ainda que essa força vença e que eu parta (em vários sentidos), não será para sempre. Eu vou, mas volto mais forte, mais pronta, mais inteira. Porque eu sou, para meu azar e deleite, todas essas coisas das quais tento fugir. Sou profundamente e em essência minha capacidade de enfrentar a dor e fazer dela algo útil. E eu sei que muitos são como eu, ainda que hoje não sejam maioria. Na minha cidade, somos menos de 30%. Mas os números nunca foram o meu forte. Meu forte são as pessoas. Minha fortaleza está nelas. E é para elas e por mim que venço a vontade de desistir e me ponho de pé, todos os dias.



Comentários

Claudia de Oliveira disse…
Maravilhoso e sincero. Também fico sem chão e a cada dia tento me convencer que coisas ruins não vão acontecer. Mas quem estou enganando?