João e a escola de Babel (ou Seven Nation Army): A viagem e a cura - Parte IV


Beth Soares

Sete da manhã. Lá estava eu, pronta para o primeiro dia de aula em terras estrangeiras. A gente tem mania de achar que, porque virou adulto, nada mais pode ser motivo para causar insegurança. Se eu levasse isso a sério, teria que admitir meu notório fracasso em virar gente grande. 

Eu e Isabella, minha parceira de escola, pegamos o trem tão pontual quanto lotado (de pessoas muito bem-educadas que, ao invés de nos acotovelarem e empurrarem, pediam licença calmamente, respeitando nossa velocidade). A primeira parte da viagem nos levaria até a estação Waterloo, uma espécie de Sé, que nós, paulistas, conhecemos tão bem. De lá, um ônibus nos levaria até o outro lado da ponte, para Holborn, nossa parada para o número 2 da Southampton Place, onde ficava nossa escola, a Stafford House.


Aqui, um parêntese: todos os dias, bem no meio da Ponte Waterloo (nome dado em homenagem à famosa batalha que levou o exército britânico à vitória sobre o francês Napoleão), pela janela do ônibus de dois andares, com o sol raiando à minha frente, a London Eye à minha esquerda, o Big Ben à minha direita e o rio Tâmisa aos meus pés, eu esquecia qualquer contrariedade para agradecer por meus olhos que, mesmo míopes, estavam ali para me proporcionar aquela paisagem que, eu sabia, seria profundamente marcante na minha história.


A escola era uma Torre de Babel divertidíssima. A experiência de compartilhar uma sala de aula com pessoas de todo o mundo é ímpar. Ali eu não podia contar com aquele trunfo secreto que todo aluno de escola de idioma já usou em algum (ou vários) momento(s) da vida: cochichar, para o colega que não entendeu o que você disse, a tradução da sua frase em português, sem que a professora perceba (sorry, teacher Aline, mas eu já fiz muito isso). 

Por hábito, sem querer (e sem pensar), cochichei a tradução em português de uma frase para uma chinesa... óbvio que ela me olhou como se eu fosse um ET. No mínimo, se achou péssima aluna, porque, obviamente, entendeu menos ainda o que eu já tinha dito em inglês. Coincidência ou não, dias depois, pediu para mudar de classe, para uma turma menos avançada. 

Era curioso perceber que todos nós, humanos, temos as mesmas inseguranças, medos e desejo por aceitação, ainda que em graus diferentes. Minha classe tinha duas tailandesas, um chinês, um italiano, um belga, um francês (que me ensinou a falar algumas frases que me salvaram em Paris), duas turcas e dois brasileiros, além de mim e da professora Renata, para nossa sorte, também brasileira (mas vale ressaltar que nunca a ouvi dizendo sequer uma frase em português). Conheci um pouquinho de cada história. Gente que, além da coragem e do desejo de desbravar o mundo, tinha em comum um sentimento inexplicável de identificação, carinho e respeito por Londres.
Cercada por tudo isso, minha insegurança durou pouco tempo. Logo percebi que estávamos todos no mesmo barco. Além disso, funcionários muito simpáticos e atenciosos nos ajudavam o tempo todo. Um deles, em especial, guardei na memória. Trabalhava no refeitório. Logo no meu primeiro dia, quando chegou minha vez na fila, perguntei a ele, com um inglês ainda muito tímido, qual era o menu. Ele respondeu com um inglês bem compreensível. Me cobrou um “thank you” que eu, não sei se por vergonha ou fome, esqueci de lhe dar. 

Ao final da refeição, depois de dividir a mesa com chineses, italianos, argentinos, escoceses e tailandeses, fui até o simpático funcionário, que agora nos ajudava a colocar a bandeja com a louça suja em uma das inúmeras prateleiras de metal. Antes que eu pudesse usar meu já mentalmente ensaiado “thank you again”, ele soltou: 

- E aí? Matou o bichão? 
- Sorry? (eu ainda não tinha entendido/acreditado que era português). 
- Você conseguiu matar a fome? 
- Ah, sim, sim! Obrigada! – E ambos rimos. 

Assim conheci João, brasileiro mais corajoso que eu, pois deixou o calor da Bahia para se arriscar em Londres, por período muito maior do que quatro semanas. Observei-o trabalhar todos os dias com um sorriso no rosto. E todas as vezes que eu pensei em faltar para dormir mais um pouquinho, em reclamar do frio ou da falta que fazia ouvir português na rua, eu lembrava do João. Ficava imaginando quantas batalhas, tão importantes para ele quanto Waterloo foi para os ingleses, ele tinha que vencer todos os dias. 

Londres abriga pessoas de diversas partes do mundo e algumas delas têm bastante preconceito com sul-americanos. Mas eu olhava para ele e via naquele sorriso tanta força. Era como se nada pudesse fazê-lo voltar atrás. Os “thank you” esquecidos, para ele, eram fichinha. Imagino que todas as noites ele deveria se comprometer consigo mesmo a esquecer da pequenez humana. Por isso, era tão fácil para ele perdoar. Ele devia saber que todos, absolutamente todos, venham de onde vierem, têm suas forças, fraquezas e histórias para contar. E quando se compreende isso profundamente, adquire-se uma grandeza capaz de vencer muitos exércitos. 



*Para João, Paul, Pllah, Eye, Max, Phillip, Ludovic, Fred, Renata e todos os meus colegas de classe em Londres, dedico a canção Seven Nation Army, que tão bem traduz essa força que vi.






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