Vivendo entre as pedras (Crônicas Além do Quintal n.13)


Marcus Vinicius Batista

O pôr do sol indica a hora de bater o ponto. Em Lisboa, com o horário de verão, João de Moura trabalha até às 21 horas. Ele recolhe o papelão estendido na mureta, local onde recebe as contribuições dos turistas. Féria curta numa terça-feira de bom tempo.

Depois, o artista passa em revista as esculturas em exposição e em construção. Desce até as margens do rio Tejo e apanha a mochila azul embaixo da mureta, a coloca nas costas e, sem dizer palavra ao observador, recolhe e dobra a bandeira de Portugal antes de atravessar a rua. Lá, no portão lateral do teatro, desamarra a bicicleta e segue para casa.

João de Moura está nas redondezas da praça do Comércio sete dias por semana. O escritório são as pedras, onde cria obras inegociáveis a partir do meio-dia. A exposição é temporária e permanente ao mesmo tempo. Permanente porque as pedras não saem dali de modo algum. O peso da ecologia. Temporária porque ele redecora o quadro quando se entendia com suas criações. Somente o fundo do Tejo se mantém intocável, ainda de cores variáveis conforme a luminosidade.

João recebe doações para prosseguir seu trabalho e não se opõe às fotos ou gravações dos visitantes. Não é muito afeito às interações sociais, costuma falar baixo e é preciso certa habilidade para compreender seu sotaque português mais forte e acelerado do que o habitual. 

João embeleza as pedras com um pouco de tinta. Mas a primeira etapa é desafiar a física com o equilíbrio da matéria-prima. Assusto-me para então ficar admirado com pedras que se equilibram pelas pontas. O segredo seria procurar e explorar uma base forte e não desrespeitar o limite de quatro pedras na vertical por obra. 

Como qualquer escultor, João segue as ancestrais lições europeias, que nos dizem que a escultura já está lá, basta retirar os excessos. Sem interesse em desbastar as pedras, ele cria ao mudá-las de lugar, dentro do cenário da margem do rio. Naquele espaço, ele expressa suas paixões e crenças. 

Aproveitando a maré baixa, ele desenhou um recado para o Papa, no qual fala de amor. João de Moura é católico fervoroso e sua fé se traduz noutra escultura, onde fala com Santo Antônio, falsamente atribuído por muitos o protetor de Portugal. São Vicente é o responsável pelo posto, aprendi em um castelo de outro santo, o Jorge.

João confirma uma de minhas (falsas) certezas, a de que é impossível separar artista e obra. Ele, como todos os criadores, conversa sobre o próprio mundo, o que inclui suas devoções, não somente as religiosas. Para muitos portugueses, considera o fado um gênero musical de tom melancólico significa simplismo de turista de primeira viagem. Fado representa um cântico de amor à terra. João reza a cartilha quando esculpe uma versão rochosa de Amália Rodrigues, a rainha do fado. 



João de Moura me deu, sem saber, dez minutos do seu tempo. O tempo em que cheguei para ver o pôr do sol, ritual nosso de viagens. Permitiu-me observar sem palavras em excesso. Fingia não testemunhar interferência estrangeira.

Às margens do rio Tejo, acompanho o anoitecer e vejo, além da noite sem estrelas e da Lua minguante, João sumir em meio ao trânsito com poucas moedas no bolso e muitas lembranças anônimas nos celulares de turistas.

Comentários

Junior Landim disse…
Que belezura de texto Professor! Obrigado por se apresentar artista tão autêntico e criativo. Navegar é preciso caro amigo Batista! Abraço Junior Landim
Oi, Marcus, bom dia!
As suas crônicas fazem- me e eu as leio sempre prazerosamente.
Há alguns dias recebi de você um vídeo de que também gostei muito. Era um homem a cantar na praça de uma cidade de clima bastante frio.
Há nele várias classes de beleza: a voz,as pessoas admiradas, a letra, todo o sentimento trazido pelo conjunto desses elementos humanos.
Grande abraço!
Mozar.