Karius, o grande




Marcus Vinicius Batista

Como estava trabalhando, não assisti à final da Champions League, entre Real Madrid e Liverpool. No caminho para casa, acessei a Internet e descobri o resultado. O 3 a 1 não me causou espanto. O que me provocou ansiedade foram as duas falhas do goleiro Loris Karius, alemão de 24 anos que defende o clube inglês.

Mal cheguei em casa, liguei a TV e entrei no YouTube para ver os melhores momentos da partida. Não conseguia me levantar do sofá. Estava perplexo com os dois erros do goleiro, de naturezas diferentes, porém falhas indefensáveis para um atleta daquele nível, num jogo daquela relevância. O gol de Bale parecia chute de bico em pelada de bairro.

Como goleiro, não consigo enxergar diferente. A solidão é única diante de um estádio lotado na partida mais importante da carreira do sujeito. Não se escuta coisa alguma. O silêncio interno dói. Pedir desculpas prova o valor do jogador, mas não reduz a culpa de quem se sente responsável por algo definido pela velha máxima: “o vice é o primeiro dos últimos”.

Ver um goleiro falhar sempre me entristece. Muitos o abandonam aos fantasmas que amaldiçoam a pequena área. Ele se ergue sozinho, enquanto a cabeça é puxada no sentido contrário, pela gravidade da vergonha. Corpo de pé por obrigação, cabeça no buraco por desejo de sumiço instantâneo.

Outros viram as costas com olhares ranzinzas. Centenas apontam o dedo como se compreendessem os intestinos deste ofício fadado ao não reconhecimento. A unanimidade se aproxima nos olhares de culpa, de quem no íntimo pensa: “ele é o responsável por tudo!”

Faço muito esforço para não ter pena. E não tenho. Pena é um sentimento arrogante, que nos coloca em falsa posição de superioridade, de testemunha ocular omissa. Karius não necessita de misericórdia, precisa de muito trabalho. Goleiros são criaturas destinadas à repetição de movimentos, à sucessão de quedas, à rotina de cair e se levantar, com a bola nas mãos ou no fundo do gol.

Treinar como um animal não apaga o trauma, mas o faz alcançar uma gaveta secundária da dor. Cada defesa é uma estocada tímida no frango que urra na memória de um goleiro. Facadas de lesão mínima, porém capazes de sangrar em conjunto. Goleiros sangram nos cantos dos vestiários.

Mesmo se as falhas não acontecessem, seria especulação cogitar outro final de jogo. Futebol pode até ser estatística, mas jamais será lógico-matemático. Não há corrigir o deslize de um goleiro. É a última fronteira, não há mais ninguém, exceto a escuridão da derrota.

Os demais jogadores podem errar aos montes, que ainda assim têm a chance de olhar para trás e orar pelo milagre. O goleiro não tem a quem recorrer. Nem a quem agradecer. Ele é o operador do milagre. Ele também carrega a maldição de enterrar o trabalho do restante. O jogo por uma bola.

Se serve como mérito, grandes goleiros cometem grandes equívocos. Um grande goleiro não toma gol defensável. Ele leva um frango, de segurar pelas pontas das penas. Oliver Kahn soltou uma bola e se arrastou aos pés de Ronaldo, na final da Copa do Mundo de 2002, um dia depois de ser eleito o melhor jogador da competição. Ele carregou a Alemanha nas costas.

Barbosa cumpriu prisão perpétua no imaginário popular após falhar no segundo gol contra o Uruguai, na final da Copa do Mundo de 1950, diante de 200 mil almas no Maracanã. E Marcos, o melhor goleiro da história do Palmeiras ao lado de Emerson Leão, caçou borboletas na final do Mundial Interclubes. O Palmeiras perdeu por 1 a 0. Marcos foi canonizado na Libertadores.

Não comparo nomes, apenas sugiro situações. Karius ainda não é um grande goleiro, mas está no caminho. Seria cruel e hipócrita avaliá-lo por um jogo. É candidato à vaga de Neuer, o mito a ser seguido e substituído em alguns anos na Alemanha.

Karius é jovem, tem mais de uma década de carreira a seguir. Ele está entre os melhores goleiros de sua geração e pode se recuperar com rapidez. Adoraria vê-lo novamente na final da Champions League; de preferência, contra o mesmo Real Madrid, com a diferença de que – neste dia – ele fecharia o gol e sairia como herói. Nada surpreendente dentro da história deste esporte.

P.S.: Em solidariedade e coerência com o texto acima, resolvi não disponibilizar os lances do jogo. Imagino que você tenha visto, mas que seja em outro endereço. 

Comentários

Andre Argolo disse…
Pensei mesmo em ti no dia da final. Vi o jogo. No primeiro gol, apesar da bobagem, teve também a esperteza do atacante. Mas o segundo "frango" foi mais doído. Como o gol de bicicleta numa final eterniza o jogador de linha, o frangaço numa final arrasa o goleiro. Que extrema é essa vivência, pensei. Quantos olhos do mundo estavam sobre o Karius naquele instante? E a abrangência da consciência dele sobre isso, qual é e quanto pesa? Essa tonelada é maior sobre ele do que foi sobre o Barbosa, como você fala no texto? Épocas diferentes, números diferentes. Barbosa condenado à perpétua. Lembro dele, morava em Praia Grande, se não me engano. A rapidez das informações, uma atropelando outra, dos tempos atuais, será que apagam mais rápido o lance de Karius e deixam, assim, marca menos profunda do que o lance de Barbosa (também considerando a diferença que há entre uma final de Copa do Mundo no Brasil e uma final de Champions League, que tem todo ano)? Comparações são difíceis. Elas servem mais como aproximações do que como uma medida que almeja alguma precisão. No meu mundo inventado, um gol como esse provocaria silêncio no estádio, que ecoaria uma celebração envergonhada do autor do gol, quase pedindo desculpas ou abraçando o goleiro, assim como Taffarel abraçando Roberto Baggio em 1994 ou Bats a Zico em 1986.