A queda




Marcus Vinicius Batista

Quebrei um tabu depois de 43 anos. Caí na rua. Daqueles tombos de ficar estatelado no concreto. Um corpo estendido no chão, como dizia o poeta de olhos claros e Holanda no sobrenome. Na minha cabeça, quatro segundos de 90 graus a zero absoluto. Nos meus olhos, uma visão do corpo que teima em contradizer os ideais de juventude, ilusórios aos neurônios.

2018 é ano de celebrar o inédito, abraçar o novo. Uma semana de hospital por conta de uma infecção bacteriana no rosto. Celulite facial é o nome dela. Um ombro com tendões rompidos e uma capsulite. Cirurgia no horizonte. Nomes estranhos, novas crônicas no tempo certo. Agora, a queda!

Tinha 15 minutos de intervalo antes da próxima aula na universidade. Deixei meus livros no armário e caminhei duas quadras até o banco. Dava para retirar dinheiro e economizar tempo para outro banco, numa conversa mais demorada na hora do almoço.

Faltavam menos de três metros para a porta giratória quando o pé direito bateu no concreto que delimita o estacionamento dos carros em frente à agência. Não sei o nome do agressor, mas se parece com aquelas “tartarugas” com olho de gato que auxiliam no trânsito.

Tentei me equilibrar com o pé esquerdo, estratégia que costumava funcionar contra outras tentativas de homicídio. O pé direito deu alarme falso, sem tempo que minhas mãos me protegessem. Uma delas largou o celular e saiu desesperadamente do bolso para amenizar potenciais danos. Peito no chão, batida com o ombro arrebentado no solo. O lábio e o nariz dão um leve beijo, um selinho incapaz de sentir o gosto do piso que me amparava com a dureza de um relacionamento fracassado.

Meu cérebro jura que foram três, quatro segundos antes da injeção de adrenalina. Injeção de vergonha e susto, reações automáticas que me colocaram de pé. Passei as mãos no rosto por duas vezes. Não havia sangue.

Ao meu lado, quatro testemunhas tentavam acudir o amassado. Dois homens que chegavam à agência e um casal que saia dela. A moça perguntou:

— Você passou mal? Teve um mal-estar?

— Não, tudo bem, só tropecei. (Tropeçar aqui soa como doença menos grave, efeito colateral da agressão sofrida pelo inanimado)

Como já estava de pé, todos se afastaram. Bati as mãos na camiseta, como se sacudisse a poeira, mesmo que não houvesse volta por cima. Olhei os joelhos. Nada. Um leve ralado no dedo mindinho, sem sangue, o que justifica sua inutilidade ou inveja do outro dedo gêmeo, torto pelos anos de goleiro.

Não me lembro como passei pela porta giratória. Quando vi, estava na boca do caixa eletrônico. Tirei rapidamente o dinheiro e me virei para ir embora. Antes de sair, olhei no rosto da vigilante, agora um borrão na memória. Ela manteve o semblante de guarda real britânica, mas tenho certeza de que captei aquela fagulha, aquele instante que denuncia: “eu vi o que você fez, tio”.

Voltei a passos tímidos para a universidade. Duas vezes, parei para olhar minha calça e minha camiseta. Nada rasgado, nenhuma explicação a dar aos alunos. Entrei na sala dos professores, cumprimentei um colega, fui ao banheiro, verifiquei o rosto. Nada também. Somente a história do primeiro sutiã, versão lei da gravidade. Horas depois, a percepção dolorosa de uma lesão muscular na coxa direita.

Minha esposa Beth jura que preciso me benzer. Não desacredito não. Estou concordando, isso sim. O espírito suspeito (e zombeteiro) é forte. Ou era alguém que sabia: ir ao banco numa segunda-feira, começo de expediente, é trabalho de encruzilhada tão ruim que merece proteção. Nem que pareça peripécia de saci.


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