O primeiro banho inglês (Crônicas além do quintal # 9)



Marcus Vinicius Batista

A melhor tradução é a matemática para medir o mau cheiro. 11 horas de voo, sentado o tempo todo, entre São Paulo e Londres, apertando todos os cantos do corpo. No aeroporto, mais meia hora em pé, suando para responderão inquérito da imigração. De lá, mais uma hora de trem até o quarto alugado pelo AirBnb.

Larguei as malas, conheci Mr. Michael, o dono da casa (este merece uma crônica), e voltei para a rua com Beth. Lanchamos, conhecemos os colegas da república onde ela estava hospedada. Passeamos, a pedi em casamento (outra crônica, também), deixei-a na república e caminhei um quilômetro e meio para casa.

Cheguei a uma hora da manhã. 22 horas com a mesma roupa. A diferença era o casaco para suportar o frio de zero grau. Sem suor, mas com todos os fluídos congelados.

O primeiro susto foi a porta da casa aberta. A promessa de chave debaixo do capacho não fora cumprida pelo anfitrião. Residência sem muros ou portões, sem chave ou cadeado a uma da manhã numa metrópole. Subi e bati na porta do quarto de Mr. Michael, com mais medo do fantasma da violência do que da reação do lorde inglês.

Mr. Michael me atendeu sonolento. Dormia num colchonete junto com o cachorro daquelas raças britânicas que desconheço o nome. Ali, notei outra gentileza: ele me cedera o próprio quarto, a cama de casal onde curtia sua viuvez. “Deixe a porta aberta lá embaixo, sem problemas. Até amanhã”.

Fui para meu quarto, separei uma muda de roupas e fui tomar banho. Ao entrar no banheiro, o piso era coberto por um carpete verde, bem grosso e felpudo. Os pés afundavam no gramado. Nunca havia visto e até hoje nunca mais visitei um banheiro forrado com carpete. Pensei, de imediato: imagine anos de acúmulo de respingos. Umidade num país que chove adoidado. Pressão para não errar o alvo. 



Mesmo exausto, mantive 100% de precisão, como um atirador de elite. Mais magro, tirei a roupa e entrei na banheira. Imóvel antigo, com chuveiro dentro dela. Olhei para a parede. Cadê o registro? A única torneira servia para encher a banheira...e só saía água gelada. 

Na parede, mais umas quatro alavancas. Para cima ou para baixo. Nenhuma combinação funcionava. Não poderia incomodar Mr. Michael novamente. Prometera voltar às nove da noite. Cheguei a uma da manhã. E ainda tinha acordado o sujeito. Começaram as batidas na porta. O que ele queria àquela altura da madrugada? Percebeu minhas dificuldades? Especulava que o estrangeiro do Brasil não sabia como funcionava um banheiro daqueles?

Prestei atenção e notei que eram arranhões. O cachorro inglês escapara. Me enrolei na toalha, abri a porta e espantei o visitante. Ele voltou para o quarto do dono. A porta se fechara.

Retornei para o banheiro com um problema hidráulico. Olhava para as alavancas, tentava combinações e frio desértico. Seco. Um dia inteiro sem banho. Da Europa gelada e barbudos viemos, para lá voltaremos colonizadores e fedidos.

Quase duas horas da manhã, precisava dormir para sair pela manhã, no máximo às 8 horas. Uma solução prática à vista. Na pia, um simples movimento da torneira para a direita e brotava a água quente.

A Inglaterra virou República Tcheca. Água quente e sabonete sanaram os odores das regiões em calamidade pública. O jeitinho brasileiro para restaurar a atmosfera sem substâncias tóxicas e manter o carpete com ares de campo de futebol virgem.

Minutos depois, estava na cama, sem me esquecer da porta destrancada na entrada da casa. Expulsei o cachorro inglês, tranquei-me no quarto, coloquei o passaporte embaixo do travesseiro e dormi como uma pedra.

Acordei meia hora mais cedo, decifrei o chuveiro, coloquei o restante do território corporal sob carimbo positivo da Vigilância Sanitária, me arrumei e saí de casa. Andei aquele quilômetro e meio e, quando encontrei Beth, ouvi com prazer:

“Amor, como você está cheiroso!”

“É o banho inglês, amor, é o banho inglês.”


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