A gritadeira



Silvia Maritani*

Minha janela fica de lado para a avenida Afonso Pena, em Santos, de forma que - se eu coloco a cabeça para fora ou sento numa banqueta meio de lado -, consigo ver a avenida e sua movimentação. Às vezes, não se faz necessário olhar no relógio; me oriento, a maior parte das vezes, pelo barulho dos carros, ônibus e motos que transitam por aqui.

No dia da greve de ônibus desse ano, cheguei muito atrasada ao trabalho. Normalmente percebo que estou atrasada quando ouço muito barulho e adiantada quando ouço só os pássaros, que acordam bem cedo. Nesse dia, nem os pássaros eu ouvi, parecia até que eu tinha me teleportado durante a noite para uma cidade de interior.

Aos domingos, quando a preguiça de estar apenas um dia livre em casa me impede de sair para a rua, sento e olho pela janela. Vejo as outras tantas janelas do prédio ao lado e, se for cedo demais, dois gatos que moram nos andares de baixo. Mexo com eles, um é mais bobo do que o outro e fica procurando quem está fazendo o barulho. Talvez não seja bobo e sim, meio surdo, de qualquer forma me divirto dando bom dia aos gatos.

O mais esperto me olha nos olhos na hora. Aqueles olhos amarelos gigantes. Os dois são lindos e fico feliz por serem meus vizinhos; assim, mato um pouco a vontade de ter gatos, que me dão alergia, mas não cansam de aparecer na minha vida, principalmente os laranjas e amarelos.

Saio da janela apenas na hora da gritaria, quando a dona do gato que é meio bobo (acho que agora entendo porque ele é surdo) acorda e começa a esbravejar que sei lá quem de sua família é um grande vagabundo. Todo o domingo, na mesma hora, o cara é o maior vagabundo do universo inteiro.

Nunca vi essa vizinha, mas sua projeção de voz é admirável. Aposto que todos escutam seu discurso e ela o faz sempre no mesmo dia e na mesma hora, provavelmente para todos escutarem mesmo.

Saio da janela porque os gritos me incomodam. Vou tomar banho ou qualquer coisa que abafe os gritos dela. Espero que ela goste muito do rapaz e, por isso, grite para incentivá-lo, o que talvez acabe dando o efeito meio bobo nele, que às vezes responde, mas sua voz chega baixa em minha janela.

Essa vizinha, que nunca vi pessoalmente e não sei suas intenções, muito menos sua história de vida, me ensina todos os dias a como não tratar a minha família. Eu poderia morar em qualquer outro lugar, mas acabei parando na janela ao lado da vizinha que grita, nervosa com o vagabundo e promete chamar a polícia.

* Esta crônica nasceu do curso "Crônica: o amor pela vida cotidiana", que aconteceu em julho deste ano, no Lobo Estúdio, em Santos.

Comentários

Maria Bernadete disse…
Silvia, sua crônica está ótima, muito criativa, parabéns!
Unknown disse…
Me identifiquei com essa cronica, pois também moro em Santos, na Av Conselheiro Nebias, mas moro no 4o bloco e nao ouço o barulho da avenida.
Tenho dois gatos lindos e amarelos, que fazem a minha felicidade e alegria dos vizinhos, pois brincam entre si na janela da sala, encantando a todos.
Minha janela da sala, da pra janela do apartamento de outro bloco, apartamento de um casal de "idosos" , q quando mudaram pra ca, achei q meus problemas haviam acabado, pois esse apartamento ja abrigou um rapaz q andava ora de cueca, ora nú, literalmente nú... Um espetáculo, mas tenho três filhos recem saidos da adolecencia e não achava bacana esse comportamento frequente do meu vizinho. Depois, esse mesmo apartamento virou uma republica de meninas, que faziam festa todas as quintas, durando toda a madrugada.
Qdo esse casal se mudou pra ca, achei uma maravilha, porém, ele é um homem grosseiro, e deselegante, grita com a esposa o tempo todo, principalmente às segundas feiras, minha folga.
Ela retruca em voz baixa, mal se ouve sua voz, percebe-se que ela tem vergonha, pois sabe que são ouvidos. Enfim, o apartamento 31F, é o terror das minhas folgas rsrs