O exercício ilegal da escrita (Contracapa # 32)





Marcus Vinicius Batista

Não sou escritor. Não peco pela falsa modéstia, não me coloco como vítima ou espero que baldes de confetes caiam na minha cabeça. Ser escritor, neste início de raciocínio, é entendê-lo como ofício autossustentável, que exija horas de dedicação diária com remuneração compatível para que outras atividades profissionais sejam dispensadas.

Sou jornalista, o que pode levar à conclusão precipitada de que escrevo sempre. Jornalistas e escritores são bichos bem diferentes. A primeira é quase uma subespécie da segunda, ávida por subir um degrau darwiniano. Jornalistas, quando publicam livros-reportagem, pedem o cartão verde para mudar de posição social, para ingerir o verniz de criador literário.

Escrever, como pintura, escultura e arte cênica, não é para qualquer sujeito. Digo isso no sentido de que não basta acreditar na falsa promessa de inspiração ou nas limitações do talento. Acredito cegamente de que trabalho reduz a distância entre um texto qualquer e o texto. Ainda assim, não há garantias, somente riscos, hipóteses, tentativa e erro.

Escrever, assim como quaisquer outras manifestações artísticas, é técnica e estudo. Estudo diário, como um pianista que gasta os dedos nas teclas. Ainda me assusto ao ver aventureiros e outras criaturas famintas por glamour se chamando de escritores porque misturaram palavras em um rascunho.

É óbvio que, como lembrou George Orwell, a escrita é um ato de pessoas vaidosas, que necessitam de leitores para perpetuar suas ideias. Só que faltam outros elementos essenciais para que se possa avançar literariamente e, por conceito, não caio na armadilha subjetiva de estabelecer qualidade ou estilo “adequados”.


Por outro lado, o autor de “1984” defende que escrever é uma ação política, mesmo que a criação seja superficial. A teoria é, acima de tudo, coerente com a obra dele. A superficialidade deveria ser vista como possibilidade política, uma escolha que depende da proposta e dos objetivos do autor; neste caso, ideologia e contexto seriam outros ingredientes para outros diálogos. Mas fico na dúvida: até que ponto somos superficiais por consciência? Ou vestimos o manto da aparência e arrotamos profundidade de castelo de areia?

Ray Bradbury escreveu um livro que, à primeira vista, parece simpático, mas esconde camadas demasiado sérias para quem anseia escrever. Em “O zen e a arte da escrita”, ele nos fala que escrever envolve entusiasmo e prazer. Eu acrescentaria, sem pretensões de assinar documentos definitivos, que a escrita deve carregar consigo uma dose de indignação, além da inerente experiência de quem a pratica.

Não há como escrever, com capacidade de proporcionar identificação e estranhamento do leitor, sem sentimentos. As palavras são honestas, inclusive quando denunciam o uso leviano de um autor. As entrelinhas entregam o falsário. Os parágrafos gritam para desmascarar um estelionatário.

Escrever pode gerar injustiças, mas – no momento em que um texto nasce – o autor foi honesto com o próprio erro de exagerar nas letras. Pode se arrepender depois e, com franqueza, reparar – nas limitações que um segundo texto carrega – o escorregão.

Escrever com indignação, raiva ou irritação nos permite mastigar melhor as reais intenções de quem cria. Não poupar o leitor é convidá-lo para uma dança com regras claras sobre o horário de término da música. Não há lugar para a retórica vazia, que se revela no tom das primeiras frases.

Escrever bem tem como uma das premissas acreditar no que se diz. Na literatura, a descrença se revela no estilo artificial, nas palavras que representam a pose, no egoísmo do autor que se esconde do leitor na arrogância de não ser entendido ou de acusar que foi mal interpretado por completo. No Jornalismo, a descrença se cristaliza nas reportagens que transferem responsabilidades, que padronizam um estilo meramente técnico, que despersonaliza o autor, seus sentimentos, sua sensibilidade para convencer o leitor de que aquela história merece mais do que ser um intervalo entre pedaços de pizza. 




Escrever é um trabalho artesanal, de esculpir, desmanchar (em parte ou o todo) e esculpir novamente. Quem escreve deveria ser eternamente insatisfeito, ignorar os elogios bajuladores, analisar as críticas e nunca, jamais considerar que um texto publicado não precisa, não implora por ser reescrito. É claro que um texto exige, para saúde mental de seu criador, momentos de abandono. Textos são egoístas e não merecem exclusividade criativa.

A insatisfação do escritor garante que ele, ao menos, terá o direito de tentar subir um degrau em seu ofício. Nada assegura que seus filhos serão esbeltos e saudáveis. Mas a insatisfação com suas criações depende, definitivamente, de trabalho contínuo e estudo incessante. Caso contrário, escritores se transformam em repetidores de palavras sem significado real. E, ironicamente, escritores morrem quando viram reprodutores de si mesmos. Clones de um texto que, com o tempo, não se suporta como estrutura literária.

Tento evitar escrever sobre escrever. Temo a sensação de que estou enrolando leitores ou de que posso sofrer de ausência de assunto. Como escreveu Virginia Wolff, escritores não costumam escrever sobre o ato de escrever porque estão ocupados escrevendo.

Ao não me classificar como tal no início de texto, senti-me autorizado ao exercício ilegal da divagação e ao desejo eventual de exorcizar o que tento fazer quase todos os dias. Simplesmente, o parto aconteceu. Pensando sobre o que faço, talvez um dia melhore.


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