Gratidão - a sabedoria em viver




Marcus Vinicius Batista

Achei o livro sem querer, fuçando prateleiras numa livraria de Santos. Não pretendia comprar nada - havia esgotado minha cota -, mas mudei de ideia quando Gratidão, de Oliver Sacks, caiu em mãos. Desconhecia o lançamento.

A capa, totalmente branca, me transmitiu paz e leveza sem saber exatamente o porquê. Uma ilustração de fundo azul como falsa capa completava a sensação de simplicidade marítima, adequada à forma de escrever do autor.

Gratidão é um livro póstumo. Sacks morreu em agosto de 2015, vítima de câncer, aos 82 anos. Foi um dos mais famosos neurologistas do planeta, relevante também pelo seu papel como divulgador científico. A obra reúne quatro textos publicados por Sacks no jornal The New York Times nos dois anos anteriores à sua morte.

O livro é quase do tamanho bolso, com 64 páginas, mas bem mais denso do que muitos tijolos de centenas de folhas. A densidade não está no jeito de se expressar; pelo contrário, a linguagem é direta, como se Sacks conversasse conosco. A profundidade se encontra na maneira como se expõe, sem parecer exibicionista, e como fala da vida e da morte, tão caras numa sociedade que finge driblar o tabu da finitude com (aparente) felicidade full-time.

O título da obra é essencial. Sacks reconhece que teme a morte, mas não a transforma em cavalo de batalha. As consequências do câncer perdem importância - ou talvez estejam em seus devidos lugares - para um homem que prefere agradecer pela vida que teve, registrada com emoção, doçura e sinceridade no livro de memórias Sempre em Movimento.

Sacks não faz pensar sobre a necessidade desesperada de acertar as contas quando o final se aproxima. Pedimos por uma redenção quase inútil, que costuma se traduzir na retórica do perdão, e não nas atitudes que justificariam uma mudança de fato. Até seria louvável, mas - dependendo do sujeito - soa como pavor pelo que virá depois da curva, como um esparadrapo para um barco cheio d'água.

O neurologista inglês nos ensina pelo avesso. Suas reflexões estão longe de parecerem aflitas. "Não creio (nem desejo) uma existência após a morte, exceto na memória dos amigos e na esperança de que alguns dos meus livros ainda possam 'falar' às pessoas depois que eu morrer", escreveu em "Mercúrio", um dos quatro textos do livro. 




Sacks têm consciência da caminhada rumo à morte e reflete sobre suas paixões, seus hábitos e sobre alterações de pensamento ocorridas nos últimos anos. Ele não tenta retocar a própria imagem, aposta na autocrítica como processo de avaliação. "Embora tenha tido amores e amizades e nenhuma verdadeira inimizade, não posso dizer (e ninguém que me conhece dirá) que sou homem de índole branda. Ao contrário, sou um homem de temperamento tempestuoso, com entusiasmos violentos e extrema imoderação em todas as minhas paixões", refletiu em My Own Life, o mais famoso dos quatro textos, em que Sacks fala abertamente do câncer incurável no fígado.

Além de "Mercúrio", o texto "Minha Tabela Periódica" reforça a paixão do neurologista pelas ciências físicas. Apaixonado pela tabela de elementos químicos, Sacks presenteava a si mesmo e a amigos com amostras, relacionando a idade ao número do elemento. Para ele, as ciências físicas o ajudavam a reorganizar a mente no mundo das ciências humanas.

O texto que completa o livro se chama "Shabat" e relata uma cerimônia judaica de respeito aos sábados. É um olhar saudosista sobre religião, a relação com os pais e o reconhecimento da homossexualidade e o encontro com os rituais de suas origens.

Gratidão é um tratado sobre viver, com a serenidade de quem olha para o que desconhece com curiosidade, jamais com pavor, intolerância ou agressividade. Saber agradecer é um minúsculo gesto de sabedoria. 


E Sacks soube o que fazer quando percebeu, como relata em My Own Life, que era hora de limpar a casa. "Sinto uma repentina clareza de enfoque e perspectiva. Não há tempo para o que não é essencial. Devo me concentrar em mim mesmo, no meu trabalho e nos meus amigos. Não assistirei mais ao noticiário toda noite. Não vou mais prestar atenção em política ou em discussões sobre o aquecimento global. (...) Ainda me sensibilizo, (...) mas não é mais da minha conta; pertencem ao futuro."

Sacks foi um homem que gostaria de ter conhecido. Sinto, em seus escritos, que consigo manter alguma forma de diálogo com ele. Tenho metade de seus 14 livros publicados no Brasil. É o canal para aprender com alguém que, mais do que relatar casos de pacientes, conseguiu enxergar a vida e as relações humanas como poucos.

Gratidão é um pequeno frasco químico, complexo de emoções e sentimentos, impregnado de valores e ideias de um homem que morreu na idade do chumbo. Nada mais sólido, nada mais forte, nada mais sugestivo. 


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