A bota de dois litros do Zum Fass


Foto: Novo Milênio


Marcus Vinicius Batista

Ela está aposentada, no fundo do armário, onde acolhe uma dúzia de garfos verdes de plástico, aqueles de festa. É um descanso merecido depois de quase 25 anos de trabalho, na maioria das vezes como uma caneca de refrigerante, água e leite com achocolatado. Desde que saiu do Zum Fass, nunca mais serviu ao sacerdócio de armazenar cerveja.

A caneca resistiu a esbarrões e quedas leves. Nem uma lasca na louça, que hoje significa a lembrança de tempos em que beber cerveja era mais uma rotina de final de semana do que uma ocasião mensal, em doses bem menores.

É provável que, se o Zum Fass ainda existisse e repetisse a promoção, eu pedisse auxílio para conseguir tomar dois litros e meio de chopp e, assim, levar a caneca para casa. Quando a conquistei, no começo dos anos 90, me preparei uma semana para ir ao bar, hoje uma pastelaria de flango (o L é de propósito, no nome dado pelos donos chineses).

Naquela semana, ir ao Zum Fass exigia, para mim, uma construção de expectativa. Nada de treino ou disciplina alemã, somente foco para não beber outras coisas ou encher a barriga com petiscos no bar. Tudo viria depois de tomar quatro canecas e ganhar a última, como desafio vencido.

O Zum Fass era, naquele período, meu bar preferido em Santos. Frequentava outros lugares, mas entrava duas, três vezes ao mês por aquela porta encravada na rua Marechal Deodoro, de frente à rua Bahia e ao lado do Shopping Miramar, no Gonzaga.

O chopp estava sempre bem gelado - me esqueci qual era a marca -, e as comidinhas dançavam entre o cardápio tradicional de boteco e a culinária alemã. Rosbife casava com batata frita, por exemplo. De vez em quando, uma porção de frios, mas nada vencia a salada de batata com salsichão, acompanhada de mostarda escura, iguaria tradicional germânica e comparável apenas ao mesmo prato no Heinz, outro bar interessante em Santos.

O Zum Fass era um lugar apertado, para pouca gente e, por isso, acolhedor. Uma casa versátil, para namorados de primeiros encontros a grupos de amigos. Meia dúzia de mesas se espremiam no miolo, separadas por duas pilastras do edifício residencial. Pilastras que impediam a visão completa do bar, dependendo de onde você se sentasse.

A lateral esquerda tinha três, quatro sofás do estilo lanchonete norte-americana, melhor para turmas de quatro, cinco pessoas. Cada sofá em formato de U cercava uma mesa. O Zum Fass era escuro e enevoado por fumaça de cigarro. Fumar era sinônimo de boteco e ainda significava um certo estilo em público.

Independentemente da boa comida e das promoções de canecas, toda noite havia alguém que se arriscava na maior atração do Zum Fass. O copo, talvez não seja a palavra certa - tinha o formato de uma bota de mulher e comportava dois litros de chopp. A receita era pedir uma no caso de um grupo de três, quatro pessoas, pois dava tempo de esvaziá-la antes que o chopp subisse de temperatura.

A bota, quase sempre, despertava a utopia da vitória em algum cliente. O Zum Fass trazia um desafio permanente: tomar toda a bota sozinho, os dois litros de chopp, sem se babar. Em caso de sucesso, o cliente não pagava por aquela bebida.

A proposta permitia acreditar em vitória feito aposta em cassino, na fantasia de vencer a banca. O formato da bota provocava um efeito previsível para qualquer estudante de ciências, mesmo levemente embriagado. A curvatura do tornozelo gerava sucessivas bolhas de ar, quando o cliente estava próximo da metade do consumo.

A bolha impulsionava o chopp com maior velocidade e aos saltos, o que terminava com um rosto molhado, risadas do pessoal da mesa e a conta mais gorda no caixa.

O Zum Fass foi um dos endereços que me fizeram gostar de botecos, suas comidas, bebidas e, por essência, boa conversa. Experimentei a bota em grupos, nunca sozinho. Repeti somente o desafio da caneca com um amigo desde a época de faculdade, o André Argolo. Matamos as quatro e ele levou uma das canecas para casa.

Hoje, não sei onde anda a dele ou se se lembra da performance etílica. A minha caneca bege, com o nome do bar, permanece intacta no fundo do armário, à altura dos olhos, como o retrato de uma fase impossível de se reviver, exceto pela saudade.

Obs.: Texto publicado no Juicy Santos, em 29 de julho de 2016.

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