O homem duplicado


Marcus Vinicius Batista

Adoro observar pessoas. Além de perceber algumas manias de desconhecidos, as observações me divertem quando vejo alguém parecido com uma pessoa famosa. Ela perde o nome e jamais saberia que foi batizada como seu clone-celebridade.

Este exercício começou nos anos 90 com um amigo, o Alessandro Padin. Estudávamos em São Paulo e combatíamos o tédio de algumas aulas com comparações entre colegas e professores e seus respectivos gêmeos (ou algo próximo) de renome. Hoje, esta maledicência interna arranca risadas da minha esposa, principalmente quando assistimos à filmes e seriados de TV. A fofoca no conforto do sofá da sala. De vez em quando, a perversidade ressuscita na rua.

Comecei a pagar meus pecados ao entrar no ônibus da linha 77, em Santos. Acabara de sair de um trabalho e iria para outro. Subi as escadas do veículo, paguei o motorista e congelei na catraca. Foram dois segundos, desfeitos antes que o passageiro atrás de mim se irritasse. Vi o sujeito sentado no fundo do ônibus, na penúltima fileira de bancos. Vi a mim mesmo sem acompanhante, no banco do corredor.

Passei a catraca, dei meia dúzia de passos e me postei perto da porta, numa posição que me permitia olhar para o fundo do ônibus sem parecer acintoso, pervertido ou com olhar específico para alguém. Ele estava ali, um irmão gêmeo uns cinco anos mais novo (novas fronteiras da ciência, talvez), um ser humano Dolly, clonado clandestinamente a partir de exames de sangue que fiz o ano passado, é provável.

O cabelo tinha o mesmo corte, a expressão de calmaria (lentidão, dizem os detratores) e os traços faciais eram bem semelhantes. Até a barba por fazer dava a impressão de estar no mesmo comprimento. Olhava para mim mesmo e pensava no que poderia dizer se eu me cumprimentasse, se eu dissesse com licença para descer do ônibus antes que eu mesmo descesse.

Alguns pontos depois, o homem duplicado se levantou. Vestia-se do mesmo jeito, só que em cores diferentes. Não tenho camiseta rosa. Aliás, eu contrastava com uma camiseta preta, de estampa discreta, nada roqueira. Como eu, meu espelho mais conservado vestia calça jeans e tênis. Usava óculos, embora tenha conseguido notar que as lentes eram mais grossas. Uma anomalia genética, deduzi, lembrando dos genes recessivos das aulas de biologia do cursinho. Assim, descartei a hipótese de estar morto ou vendo espíritos. Do lado de lá, miopias de todas as ordens perdem sentido.

O relógio de pulso, também no braço esquerdo, se assemelhava nos ponteiros, sem vida digital. Até que notei que a tatuagem em meu braço esquerdo informava qual corpo eu habitava.

Meu irmão de transporte coletivo estacionou do meu lado. Tinha a mesma altura. Verifiquei se eu ou ele não estávamos envergados por causa do teto baixo do ônibus. Nada. É quase certeza que tínhamos os mesmos centímetros. A diferença estava na largura. Nas laterais, ele teria que se duplicar para ser a mim mesmo.

Viajamos juntos por uns cinco minutos sem trocar palavra. Eu, embasbacado de considerar a teoria de viagem no tempo ao preço de R$ 3,25 a passagem. Ele, alheio a minha presença. É duro quando o sujeito não conhece a si próprio. Quase disse a ele: “Eu sou você amanhã!”, parafraseando o slogan de uma marca de vodka. Será que minha imagem e semelhança bebia?

Dei dois passos à frente para descer no ponto seguinte. A cópia não se mexeu. Pensei: “Só faltava descer no mesmo lugar.” Nós quebraríamos – sei lá quantas – leis de espaço-tempo. Falando em legislação, Murphy se apresentou quando o ônibus brecou. Meu retrato de Dorian Gray às avessas deu dois passos. Eu desci dois degraus e o sujeito me seguiu.

Na calçada, virei à esquerda e ele à direita. Nunca mais veria o homem duplicado? Dissipei qualquer semelhança quando me lembrei de suas últimas palavras. Antes de eu descer, o motorista me desejou boa tarde. Eu respondi: “Obrigado!”, enquanto meu clone sussurrou: “Deus te abençoe!”

Definitivamente, ele não era sequer um rascunho de mim.

Obs.: Texto publicado, originalmente, no site Juicy Santos em 12 de abril de 2016. 


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