Um homem de Deus


Marcus Vinicius Batista

Seu Silveira é um sujeito solitário. Embora encontre dezenas de pessoas durante o dia, mal as conhece, com pouca chance de estabelecer uma relação de confiança. Ele é motorista de táxi 12 horas por dia e, por causa do ofício, nos encontramos duas, três vezes por ano.

A solidão o transformou em um homem metódico. Janta, por exemplo, no mesmo restaurante, às margens do canal 1, todas as noites, atrás do bom bife de sempre. É a fé no cozinheiro, como se ele preparasse nova remessa de hóstias a cada refeição.

Seu Silveira crê que a solidão morrerá se achar uma companheira para o final da vida. "Tem que cuidar de mim e cozinhar bem. Não precisa de mais nada." Ele só não sabe se o irônico isolamento pelo trabalho ou a vida de rotina rigorosa afastam as mulheres. "Religioso já sou. Ajuda."

Cada encontro nosso é uma história nova, de um cronista oral, com origens e feições pernambucanas, que incluem expressões regionais e a habilidade de seduzir pela palavra. A última delas tinha cara de fábula natalina.

Ao longo da história, ele repetiu várias vezes: "sou um homem temente à Deus. Ele estava olhando para mim." Tudo começou na última sexta-feira, dia em que a féria do dia estava acima da média. Eram 800 reais, em 150 quilômetros de corridas, só dentro de Santos. Como muitos colegas, ele se inscreveu para fazer uma viagem no final da tarde, início de noite. Seriam mais 200 reais. Já que estava na rua, sem ninguém para vê-lo em casa, por que não engordar o Natal?

Seu Silveira foi chamado pela central de rádio, dirigiu até o endereço do passageiro e, quando virou a última esquina, recebeu a comunicação da atendente: a corrida havia sido cancelada. Ou melhor, a viagem seria de outro motorista.

Seu Silveira encostou o carro e procurou por um dos diretores da empresa de táxi. Havia algum erro na distribuição do serviço. O diretor explicou que não houve falha humana. O sistema da empresa o tirou da lista e inseriu o próximo motorista. E complementou: "Seu Silveira, o senhor é um homem de Deus. Não fique chateado. O senhor receberá outro presente."

O taxista respirou profundamente e ficou em silêncio. Terminou o dia e foi comer no restaurante de sempre. Esqueceu-se do assunto até que descobriu pela manhã, na roda de conversa do ponto, que aquela viagem resultara em acidente. Ninguém se feriu, mas o carro perdeu toda a frente no choque.

Seu Silveira pediu licença, entrou no carro e pensou que era momento de refletir sobre as palavras do diretor, manipuladas ou não. Em um sábado de corrida mais fraca, 96 quilômetros percorridos em 12 horas, ele me agradeceu pela companhia e perguntou: "O senhor tem alguma dúvida que sou um homem de Deus?"

Fechei a porta do táxi, sorri para ele e fiquei de pensar.

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