Jamaica, seu Kiko, a Kombi e a galinha




A esquina da rua Vieira de Morais com a avenida Santo Amaro, em São Paulo, é testemunha das idas e vindas de pedestres, ciclistas, motos, ônibus, carros e caminhões. Ela também é o endereço de Jamaica, que impunha respeito – quando não, medo - a quem cruzava seu caminho, sensações até justificadas pelo tamanho e porte dele.

O que a pressa de quem passava por ali não deixava ver eram os olhos grandes e redondos do Jamaica que, junto com o rabo balançando à velocidade da luz, queria mesmo era ganhar carinho.

A gente nunca esquece a primeira vez com o Jamaica.

Eu, pelo menos, não vou esquecer. A esquina do endereço de Jamaica era minha passagem diária para o trabalho e, todos os dias, eu sorria para ele, com vontade de chegar mais perto. Depois de alguns dias e de me investir de coragem, fiz minha primeira parada diante dele. Fui abraçada pelas suas patas fortes depois que ele deu um pulo, ficou de pé e, nessa posição, alcançou quase a minha altura. Levantei as mãos e me rendi às lambidas. Seu Kiko ficou ali, intercalando risadas e broncas no Jamaica.

Seu Kiko e Jamaica são amigos desde que o segundo era um filhote e o primeiro ainda morava embaixo de uma lona, montada de acordo com a conveniência – ou inconveniência – em ruas do Brooklin. Depois de três anos, seu Kiko mudou de casa. Hoje, mora em uma velha Kombi, comprada depois de anos de economia e com a ajuda de uma amiga. Dentro, o espaço é compartilhado por uma cama de solteiro, roupas e outros objetos.

A galinha chegou algumas semanas depois de eu ter conhecido os dois. Seu Kiko contou que um homem, que passava pela esquina com a bichinha nos braços, perguntou se ele não queria ficar com ela. Do lugar que vinha e para aonde ia, seu Kiko não soube me responder, mas disse ao rapaz que ficava com a galinha.

Chiquita, a quem questionasse o que ele faria com ela, daria que um bom prato com quiabo. Mas era brincadeira do homem de coração mole que vivia, todos os dias, em condições duras junto com o companheiro.

Os três se deram bem. Quer dizer, mais ou menos. Jamaica não deixava Chiquita chegar perto da ração e mostrava isso com alguns pulos na direção dela. Chiquita, incansável na busca por comida – condição da sua natureza de galinha – subia no colo do seu Kiko quando ele estava comendo alguma coisa. A familiaridade foi crescendo, e ela já fazia isso mesmo sem que seu Kiko tivesse algum petisco na mão. Fazia porque queria, mesmo.

A Kombi, seu Kiko, Chiquita e Jamaica tiveram que mudar de endereço por conta de uma notificação da subprefeitura de Santo Amaro, amparada na legislação que proíbe o estacionamento permanente de carros em vias públicas. Com a ajuda de um guincho – a Kombi não funciona, serve apenas de casa – e de amigos, o veículo e seus moradores foram para uma outra rua, no mesmo bairro.

Tive que mudar meu percurso de ida ao trabalho para continuar visitando meus amigos. Em uma daquelas manhãs, vi a Chiquita caída enquanto me aproximava da Kombi. O filete de sangue que escorria próximo do seu corpo comprovava que ela estava mesmo morta. Seu Kiko explicou que, bem provavelmente, ela tinha morrido porque o papo tinha estourado.

Na última vez que passei por lá, seu Kiko e Jamaica estavam bem e lidando com as coisas do dia-a-dia: reclamações dos vizinhos que não gostam da Kombi e dos seus moradores, cumprimentos de quem passa por ali todo dia e as saídas em busca de dinheiro. Mais uma história da cidade que nunca dorme.

Obs.: Texto que nasceu do curso de Escrita Criativa, ministrado no Espaço Certo, em Santos.

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