Deuses e homens (Conversas com Beth #16)



Marcus Vinicius Batista

Conheci muitos médicos. Sou amigo de muitos deles. De jogar futebol uma vez por semana, tomar uma cerveja e fazer a resenha da partida. De perceber a humanidade e a responsabilidade a cada dúvida dentro de um consultório. E tive o desprazer de conviver com outros. Daqueles que arrotam falsa sabedoria pelos jalecos. Daqueles que não tocam a mão em pacientes porque podem descer ao nível da mortalidade.

Perdoe-me se pareço simplista, mas se trata de uma divisão pessoal, individual e intransferível. Convivo com médicos quase todos os dias da semana, por conta da doença da minha mulher, além dos acompanhamentos regulares por causa da minha amiga de anos, a diabetes. Assim, entendo que médicos podem ser divididos em duas categorias: os que sofrem pela humanidade que carregam consigo e os que sofrem pelo complexo de Deus que julgam ter se transformado.

Os deuses de consultório são perceptíveis assim que a porta se fecha. Eles olham de cima para baixo, mantém uma distância segura como se todos os pacientes tivessem ebola em ebulição. Mascaram a ignorância nos remédios amostra grátis, que garantem uns passeios de vez em quando, nos exames, dos quais são dependentes, e no palavrório com sufixo químico para afastar qualquer chance de questionamento.

Deuses, no fundo, são sujeitos autoritários. Sentem prazer em decidir seu futuro numa canetada de letra incompreensível. Vi, certa vez, uma médica plantonista não olhar para minha filha, nitidamente doente, e dar o veredicto: virose. A boca cheia para a palavra que encobre a expressão de “não faço a menor ideia do que você tem”.

Em outra situação, minha mulher, Beth, estava com a pressão altíssima – chegou a 23 por 12 – por conta de uma crise de lúpus. O médico, que teve que ser auxiliado por um enfermeiro para pedir a pressão, a classificou como hipertensa. Ignorou a informação de que ela tinha lúpus diagnosticada há 15 anos e não quis saber das orientações da reumatologista que a acompanha há mais de uma década.

Os deuses são filhos do tecnicismo, pregam a desumanização das relações e rezam de joelhos, como servos, à tecnologia dogmática da indústria farmacêutica. Os deuses incorporam doutor a seus próprios nomes.

Prefiro lidar com os médicos que colocam o homem à frente do nome gravado no bolso do jaleco. Essas pessoas compreendem, com relativa clareza, que o conhecimento médico-científico deve servir a quem não está ali para uma visita de cortesia ou uma bajulação gratuita. Médicos sabem que, mais do que o vocabulário de hospital, é preciso falar a língua de quem sofre.

Médicos não existem para curar. Existem para aliviar o sofrimento. Deuses acreditam que só vivem para curar e imagino o quanto devem provocar risada no inevitável, o quanto sofrem com as ilusórias cláusulas de suas doutrinas.

Recentemente, os 20 dias de UTI da minha mulher nos levaram a conhecer mais alguns médicos-humanos. Bruno Vieira é um deles. Ele se armou de uma espada, ao lado dos outros mosqueteiros, Philipe Saccab e Felipe Gannoum e de Rosina del Maso, a Guinevére desta história, para cutucar e ferir a matilha que ameaçava destroçar Beth. Eles ainda enfrentam os lobos (a lúpus), sempre preocupados, disponíveis e sorridentes quando a ocasião permite.

Médicos como eles conversam conosco, pacientes e familiares, na horizontal. Lidam com o conhecimento médico como elemento de solidariedade, sem ar professoral ou pregação do alto da montanha. Dividem dúvidas, procuram outros profissionais e, acima de tudo, sabem dizer “não sei”.

Diferente de muitos na era dos tagarelas, esses médicos costumam ter “escutatória”, como dizia Rubem Alves. Ser médico é ir além da doença, dos sintomas, das taxas, das estatísticas laboratoriais. Ser médico é incorporar, em tudo isso, a vida do paciente, sua rotina, sua história, inclusive seu nome. E olha que estes quatro profissionais passam seus dias entre ambulatório e UTI, aquele endereço em que a morte é o porteiro, mas nem sempre quem dá a última palavra. Agradeço a eles pelo que fizeram e fazem sem cobrar ingresso de entrada no reino de Deus.

Ao contrário dos homens, os deuses precisam, para descerem à terra dos mortais, daquilo que lhes falta: o humano, que ironicamente só se manifesta quando o vemos em outro da mesma espécie.


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