Cheques voadores



Ricardo Rugai

O talão de cheques dormiu intocável na loja por vários dias, convenientemente omitido do patrão. Perturbado por anjos e demônios, o Tacape não decidia o destino do dito cujo, até que se encheu do zero a zero e convocou o Pescoço para desempatar.

— Animal, vem cá! Dá uma olhada no que deixaram na loja. Faz quase uma semana e o dono nem veio buscar.

O pescoço emendou de primeira:

— Então foda-se, não deve fazer falta pra ele, senão tinha voltado pra perguntar, nem deve se lembrar que deixou aqui.

E assim, depois de segurar o empate até os 44 do segundo tempo, o anjinho perdeu o jogo. Entraram em campo o salário mínimo, os clientes arrogantes e esbanjadores e os desejos de consumo reprimidos. Todos seriam vingados por cada uma daquelas vinte folhas de cheque. Era coisa pensada: o talão era deles, era apenas “justiça social”, repetiam para si mesmos entre o riso e nenhuma certeza.

Só que passar cheques era bem diferente de arrebentar vidraças, jogar lixo, tocar campainha ou passar merda em maçanetas de carro, as zueiras e catarses noturnas pela rua. Os dois se preparavam para um ramo mais adulto que, como tal, exigia certa calma, mais frieza e uma bela dose de hipocrisia.

Foi duro, mas eles resistiram aos impulsos adolescentes e maquinaram por dias de que forma aqueles cheques voariam. Treinaram uma bela assinatura “de adulto” e inventaram um pai correntista cujos filhos pediam aos comerciantes que preenchessem o cheque no valor exato. Coisa pensada, restava ir às compras.

É difícil acreditar, mas pizza no final dos anos 80 era coisa para ocasiões especiais na maioria das famílias e, por isso mesmo, foi o primeiro alvo: uma de frango com catupiry e outra de quatro queijos. Pizza pedida, chegou a hora do pagamento. Educadamente mostraram o cheque assinado a um senhor bigodudo atrás do caixa:

— Meu pai pediu pro senhor preencher pra gente.

A resposta veio sorridente, acompanhada de um sotaque português carregado. Todo solícito, ele escreveu no cheque um valor bem acima do preço, enquanto sorria malandramente. A espera interminável foi recompensada com duas belas pizzas.

Seguraram a vontade de cair na risada e disparar com os embrulhos pela rua. Mal dobraram a esquina, aceleraram o passo por duas ou três quadras antes de parar, sempre seguidos pela molecada da rua. Ali mesmo destruíram a embalagem e meteram a mão na massa, se fartando com catupiry e adrenalina.

A noite ainda foi coroada pela alegria de ferrar a ganância do portuga “malandro” em cima de “crianças”. Imaginar a cara de merda do gajo descobrindo o borrachudo era o melhor de tudo para eles. O português limpou a alma da dupla de qualquer culpa, foi o empurrão que faltava.

Dali para frente, eles pegaram a manha e “fizeram a feira”, comprando peça de bicicleta, sanduíche no Pitel (é gente, não tinha McDonalds não), livros de mecânica, lanche “completo” no CPE, relógio de parede para o dia das mães e mais pizza. Foi um mês de alegria na rua. Em alguns dias, o Tacape e o Pescoço bancavam Papai Noel e já chegavam jogando Suflair e Toblerone para o alto. Alegria da molecada.

Andavam em quatro ou cinco moleques e estava mole demais. Mas a história terminou em outra pizzaria. Repetiriam o mesmo esquema, só que dessa vez o caixa demorou para conferir a assinatura, foi verificar o telefone, levou o cheque, cochichava no ouvido de outro funcionário e nada.

Eram mais de dez minutos naquele impasse até que um olhou para a cara do outro e sem dizer uma palavra combinaram que era hora de correr. Até hoje não sabem se a casa ia realmente cair ou se a pizza viria em mais um minuto, não quiseram pagar para ver, até porque só tinham cheque...

Depois desse dia, deram um tempo. O instinto dizia que estavam perto de passar do ponto ou talvez fosse apenas falta de apetite. Pensaram até em jogar o que restava dos cheques fora, mas aí já seria demais.

Nesse ponto, entra o Tuto na história. Nascido e criado na favela do Caldeirão do Diabo, ali na Senador, ele manjava das paradas, já era de maior e bem mais malandro que a dupla. Jogaram o talão na mão dele e com a promessa de “agrado”, caso o Tuto se desse bem.

Em menos de uma semana, o negão já andava coberto com roupa de marca dos pés à cabeça. Não tinha a menor cerimônia de entrar no Shopping Miramar, fazer a limpa nas lojas de playboy e sair carregado de sacolas. Não era de levar desaforo para casa e seguiu firme nesse rumo.

Volta e meia, se sabia notícia do Tuto, sempre algum enrosco. Pelos idos de 2008, numa treta de bar lá no fim na Ana Costa, soltou um direto no gogó de um sujeito que foi comer capim pela raiz. Era um PM à paisana. Meses depois, morreu com nove tiros no meio da cara.

Comentários

Anônimo disse…
Ostentação é um assassino bajulador. Um salve pro singelo prazer catupirístico - e pro texto.

Isabella
(isanarcizo@hotmail.com)