Nem tudo são lobos (Conversas com Beth # 9)


Beth Soares

Num desses dias de descanso forçado, nos quais o Telecine tem sido um aliado importante contra as doses cavalares de monotonia, revi o filme As aventuras de Pi.

Chorei, óbvio, não só porque sou manteiga derretida assumida, mas porque havia uma coincidência interessante: eu estava em companhia do meu próprio Richard Parker, um amigo em forma de tigre-de-bengala, que há alguns dias decidiu aparecer aqui no quarto. Fique livre para julgar se o que escrevo é ficção ou realidade. Não me importo, honestamente.

Comecei a pensar no quanto é curioso que as pessoas se pareçam tanto com certos bichos. Não, não, sem ofensa a uns ou outros. As características simplesmente existem e se aproximam, não depreciam perfis. Ao contrário, tornam os tipos ainda mais interessantes.

Eu tenho uma amiga tartaruga. Esqueça os clichês, por favor. Não tem qualquer relação com lentidão. É capaz de fazer e pensar mil coisas ao mesmo tempo sem desperdiçar energia em movimentos desnecessários – nem físicos nem mentais – o que lhe dá uma serenidade notável. Ela não tem preguiça das pessoas, como eu, confesso, tenho com frequência cada vez maior.

Com a firmeza de quem já teve que caminhar por muita areia antes de nadar no mar, essa tartaruga dá show de paciência comigo e com o resto do mundo de reles mortais que, com sorte, alcançarão o 70º aniversário. Sem dúvida, será multicentenária, pois sempre tem os pés no presente. Ela é um presente tempo, é substantivo com laço de fita, mas principalmente é o ato ou efeito de estar sempre perto de mim, seja numa grande festa carnavalesca na Bahia, seja numa cama de hospital.

Tenho amiga bem-te-vi. Faz voz, andar e voar de passarinho. Criatura meio etérea, não se adaptou totalmente a esse mundo. Sabe fazer palavras bonitas com letras e silêncios. De vez em quando, dá rasantes por meu mar, de onde sempre volta com água e sal nos olhos. Então me compra um doce, na tentativa desesperada de trazer algum néctar que me lembre um pouco o paraíso perdido do qual sentimos falta. Eu não desisti de procurar. Acho que ela também não.

Tenho duas amigas-esquilos. Miudezas que enchem qualquer ambiente de gargalhadas – UTIs, inclusive. São meus próprios Tico e Teco, personagens que parecem sempre terem feito parte da minha história. Gigantes de 1,60 m e menos de 50 Kg, com um talento incrível para buscar a felicidade na próxima noz, ainda que as árvores e os sonhos juvenis desabem. Sempre próximas. Sempre “nóis”!

Tenho amiga coruja, que parece já saber todas as respostas antes de me fazer as perguntas. Diante de seus olhos de rapina, meu corpo conta todos os segredos, até os que esconde de mim. Fico tentando traduzir sentimentos e pensamentos em frases compridas para explicar os caminhos desatinados da minha mente, aí vem ela, com duas ou três palavras, e explica tudo. É impressionante como leva a sério o compromisso de trazer de volta meu amor-próprio em apenas três tapas na cara!

Tenho amigo beija-flor, que chega sem aviso, rapidinho, manda eu ficar boa e voa.

Amiga-pata, que abre as asas e me aconchega, dissolvendo na lagoa da voz de pluma todo o medo que eu achei que não tinha.

Tenho casal de amigos-caranguejos, que quando aparecem deixam tudo com cara de férias, e me lembram que ainda tem um monte de coisa boa no mundo para eu fazer.

Amigo coelho, que sai da toca para perguntar o que eu preciso. Eu digo: “quero rir”! Ele nem pestaneja, me entrega de bate-pronto, não só uma, mas duas gargalhadas, numa velocidade recorde!

Cunhada-amiga, que sacode a crina enquanto me ajuda a preparar as ferraduras, me mandando desembestar livre das rédeas das culpas alheias.

Sogro-vaga-lume, que dá bronca para eu parar com a mania de deixar de brilhar.

Irmã-leoa, que esquece das mil tarefas, dos filhotes, da dureza cotidiana da selva lá fora, para me dar doses diárias de força, alegria e coragem, sem olhar de piedade. Todo dia ela me faz realmente feliz por meia-hora que valem 24.

Pai-cão-fiel, amigo leal de toda caçada, toda prova, toda guerra, toda vida.

Mãe-cordeiro, que chora escondida guardando a dor maior de todas, que é a minha, mas é mais dela.

Eu? Sou bicho ainda em metamorfose. Tenho dias de selvageria, de garras na jugular – na minha própria, quase sempre. Tenho dias de docilidade (ou preguiça), nos quais a crisálida parece impossível de ser rompida.

No fundo, sonho ser um híbrido de todos esses bichos que admiro. Presunção? E daí? Duvido que você nunca tenha parado para admirar um pavão.

Ah, e tem também um urso panda. Mas aí é outra história ...


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