Cabelos (Conversas com Beth # 12)


Marcus Vinicius Batista

Quando entramos no salão do João Lessa pela segunda vez, não sabia o que esperar. Não falo da obviedade em estar lá para cortar o cabelo, mas como seria feito. Nessas horas, só imaginava que seriam raspados a zero. Havíamos falado disso, até por inexperiência, no hospital.

Faltava, na melhor das hipóteses, descobrir qual número da máquina seria escolhido. Sabia também que eu seria o próximo, o imitador, num pacto que fizemos quando descobrimos que a quimioterapia entraria na nossa rotina pelos próximos dois anos. Nossa, porque a bomba explode sobre os minúsculos inimigos internos, mas também metralha os amigos com os estilhaços.

Depois que você explicou ao João o que precisava e ele te pediu para se sentar na cadeira, tentei ficar por algum tempo na recepção. Um bebê que me olhava com curiosidade e um menino que chupava pirulito foram incapazes de me segurar ali. Não tinha ouvido sua conversa com João e, independentemente disso, tinha que estar do seu lado.

Minutos antes, você me deixou mais tranquilo. Confirmou minha teoria de resignação, o passo substituto do medo, que te fez chorar no domingo. O cappuccino reduziu a ansiedade e a ausência momentânea do João na primeira visita, meia hora antes.

João trouxe experiência à sensibilidade daquele momento. Ele esculpiu seu novo corte na tesoura. Foi retirando os tufos e as partes que sustentavam cabelos já desgarrados com delicadeza, sem pressa, sem te expor em demasia à nova imagem. Eu mal notei parte do corte. Estava, confesso, mais preocupado com suas reações faciais. Tentava sorrir quando me observava, talvez dramatizando além da conta o que apenas parece – e jamais será – rotineiro.

Seu rosto sisudo me transmitia um incômodo, que só se dissipou quando você me garantiu que era sono. Olhava aqueles cabelos pelo chão do salão e tentava visualizar como você se sentiria depois de sairmos de lá. Caminharíamos até em casa, algumas quadras, sem lenço ou outro tipo de proteção visual.

Na rua, percebi que muita gente te olhava e rapidamente desviava o olhar. Após duas quadras, me esqueci. Nossas conversas e a decisão de visitar seus pais, desviando nosso caminho, derrubaram minha ideia de te defender da curiosidade alheia. Mas o que me fez esquecer dos outros olhos foi ter entendido, ali na calçada, em frente ao salão, que você permanecia linda, intocável.

Houve duas vantagens – melhor seria escrever fatos novos – nesse processo. A primeira delas é que não existia o fator surpresa. Temos ciência de todos os efeitos colaterais da quimioterapia, apesar de que a queda acentuada de cabelo deveria ocorrer a partir da segunda sessão, palavra dos médicos ou mau entendimento meu.

Além disso, os cabelos começaram a cair no chuveiro cinco dias antes. Já conversávamos sobre isso e tínhamos planejado o corte no João um dia antes. Aí o segundo fato novo. Como você voltou ao hospital, ficar mais um dia na UTI derrubou quaisquer expectativas. Cortar o cabelo não era mais essencial, era importante, porém secundário diante da necessidade de retornar de vez para casa.

O mais interessante é que o corte do cabelo virou motivo de novas experiências. A visita aos seus pais foi emotiva e fora do normal. Quase cortei meu cabelo por lá, mas optamos por resolver depois. Seu pai, que ainda estava na rua para dividir a alegria de te ver fora do hospital com os amigos, foi previsível na generosidade. Celebramos o novo corte com pastéis de meia dúzia de sabores. Você pôde experimentar um deles, e testemunhamos a conversa emocionada, franca e emocionante do Camarada. São aquelas aulas que seu pai nos dá sem marcar hora. Ouço com prazer porque ali nasce a hora em que ele põe ao chão as paredes da fortaleza do provedor.

À noite, em casa, passar a máquina na minha cabeça foi diferente das outras ocasiões. Não era uma questão estética ou de conter os piolhos e pulgas. Pedi que raspasse meus cabelos ao mínimo possível para que vivêssemos um pouco mais aquele rodapé de nossa história recente.

Ao som da máquina, conversamos sobre nós mesmos, sobre pessoas que nos rondam e nos ajudam, sobre a doença, compartilhamos as fofocas. Pensei em tirarmos uma foto, mas fiquei em silêncio. A decisão era sua e ela veio no dia seguinte. Lembrei que há muito tempo não tirávamos fotos juntos, só os dois, sem eventos sociais como motivo para o clique.

Saímos à noite para tomar um café. Tentar voltar ao normal, mudar o rumo da prosa, ver gente, rodear livros. No final, a canela do cappuccino: comprar um chapéu para você. Pude te ver sorrindo sem pressa de experimentar, trocando os modelos, incorporando de fato o novo design de cabelos mais curtos. Pela primeira vez, não me vi esperando para que você decidisse pela compra de um acessório.

O chapéu preto te deixou ainda mais charmosa. Ele te protege do frio, do sol que você não pode tomar, mas nos dá a fantasia parisiense de um objeto que, por quaisquer motivos, nunca fez parte do seu vestuário. Por outro lado, em tempos de dinheiro curto, não precisaremos comprar mais shampoo ou condicionador pelo restante do ano. Ironicamente, o único seu na prateleira do box é antiqueda.

A última terça-feira simbolizou o que tem sido nossos dias. É ilusório planejar a semana seguinte, o dia seguinte, enquanto a lúpus não adormecer novamente. Enquanto o lobo fechar apenas um dos olhos e rosnar, somos obrigados a pensar o que podemos fazer a cada dia. Vibramos com as pequenas boas notícias, comemoramos as vitórias provisórias. Tudo ganhou outra dimensão, incluindo as prioridades. E, como na última terça, a missão é o que fazer para que você fique confortável pelas próximas horas.

Comentários

Fernandão disse…
Um dos textos mais lindos que já li sobre o tema. Deus foi perfeito em colocar vocês dois juntos.
Redobraremos as orações para que o sofrimento diminua a cada dia.
Fiquem com Deus.
Unknown disse…
muito bonita a históri escreve de uma forma que vivemos a situação. Força menino lindo Vioces tem o maior tesouro que é o amor Que deus e o anjos acompanhem o processo e amenize este desafios de vocês Um dia vão olhar para trás e lembras apneas dos momentos de carinho de um para o outro. Experiência própria