A metamorfose (Conversas com Beth # 3)



Marcus Vinicius Batista

A UTI te transforma e te machuca. Para suportar ver alguém que você ama dentro dela, é preciso aceitar a metamorfose e se curva diante das lambadas. Não falo daquelas alterações que aconteceram quando enfrentamos uma crise conjugal ou quando meus filhos ficaram ausentes por cinco meses. São pontos de ruptura, também dolorosos, mas que aprendi a absorver e me refazer, até certo nível de racionalização, na rotina diária. No fundo, situações assim me permitiram redirecionar caminhos e administrar sentimentos com o poder do livre arbítrio. E, claro, da vida prática.

A UTI não te dá escolhas. Vivemos, eu e você, lições que engolimos na marra. Há dois anos quase cravados, atravessei a rotina de uma UTI, em outro contexto, por 45 dias. Outro hospital, outro cenário, outras condições de saúde, um enfarto que veio numa mesa de lanche sem sinais. Corrigindo ... sinais não detectados. Agora, completei a primeira semana de um segundo tempo cujo jogo não recomendo nem para os desafetos. UTI é uma partida na qual seu controle beira zero.

Em 2013, você me apoiou com bravura, serenidade e compreensão quando minha mãe padeceu numa Unidade de Terapia Intensiva. Acompanhou, como testemunha ocular, a repetição do looping no qual o paciente parece que melhorará para depois tombar em definitivo. Nunca esquecerei o que fez por mim, sempre serei grato por saber que suportou além da conta para estar ao meu lado no momento da perda. Sinto-me idiotizado ao recordar bobagens que falei, sendo injusto, inadequado e – por que não? - infantil.

Sua vida na UTI – essa primeira semana de pacote de viagem – reforçou minha visão de que este lugar nos força a aprender para continuar. A UTI é antítese da vida cotidiana. Isolados, damos um passo por vez agarrados na concretude dos fatos. Cansados, sonhamos sem delirar e abdicando da mania de grandeza. Preocupados, valorizamos mais os amigos e pessoas próximas – aquelas que brotam e criam raízes em tempos de crise – do que a velocidade pela conquista em forma de miragem e crédito de juros assaltantes.

A UTI é a aula perfeita de pontualidade. Nunca me atraso, pois não há compensação ou adiamento. Nunca pensei que poderia ser a última vez que te veria. Penso, na verdade, que é vital aproveitar a hora, hora e meia diária para estar ao seu lado, conversar sobre o que é relevante (certas futilidades são agradáveis e revigorantes), ouvir suas necessidades e desejos, entender – e contar até dez, às vezes – que as reações diversas às minhas são naturais e parte do contexto, além de tentar sorrir ainda que seja preciso moer a mandíbula para tirá-la da rigidez da angústia. Manter a postura, me perdoe, é foda!

A UTI incinera a urgência do que é falsamente irrelevante. Pessoas, coisas, lugares, compromissos que entopem as veias com aborrecimentos e mesquinharias, que alimentam a própria vaidade e a de outros, a soberba que nos faz fingir como independentes. A urgência é quase sempre tão frágil quanto à vida editada de uma rede social.

A urgência me diz respeito para que precise estar contigo, te apoiando na travessia e na estadia nesta trincheira, em uma guerra isolada de velhas armas e estratégias híbridas de uma doença de idas e vindas.

Você me ensinou muito em quatro anos. Cursos que registrei em outros escritos ou em diálogos ao pé do ouvido. Esta última semana me trouxe lembranças de velhos cadernos recheados de ensinamentos clássicos. E me mostrou que ainda faltam quilômetros para a serenidade, para a calmaria que nos permite enfrentar com total eficiência a matilha lupina.

Nunca estive tão nervoso. Nunca estive tão atento. Nunca jantei minha própria exaustão para chegar ao café da manhã do dia seguinte. Nunca fui tão pouco jornalista ao escrever para você.

Virei uma máquina de resolução de problemas. Não me queixo. É preciso estar em pé. É, acima de tudo, minha gratidão, minha responsabilidade, meu amor por você, nossa cumplicidade na linha de tiro. A missão de levá-la para nossa casa.

A UTI nos transforma realmente? Provavelmente sim, mas ela é também capaz de nos revelar endereços que jurávamos desconhecer. Achei objetos no baú que não acreditava ter escondido lá.

Espero por você aqui fora, mesmo que veja você todos os dias dentro do quarto 404. Ele é provisório, talvez seja minha única certeza. Uma cela com bela vista, mas imprecisa e ocupada pela pessoa errada. Até amanhã!

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