A enfermeira-padeiro (Conversas com Beth # 11)



Marcus Vinicius Batista*

Débora sempre gostou de hospital. Não sabe direito o porquê nem se lembra de quando visitou um pela primeira vez. Só se recorda de quando aprendeu o único sinônimo na escola: nosocômio. Sempre colocava a mão na boca, pois jurava que ali havia um palavrão em formação. Às vezes, acreditava que a professora de Português a enganava, pedindo que pronunciasse palavra feia para os moleques darem risada.

Quando chegou aos 18 anos, ouvia da mãe: “você precisa ser enfermeira-padrão. Sua tia e sua prima são. Você não pode ficar para trás.” Cursou a faculdade e, durante o estágio numa instituição em Santos, descobriu que o gosto por hospital era mais do que uma preferência de criança, como bombeiro e astronauta. Ela amava hospitais.

O amor era tão intenso que precisava se casar de vez, para não perder o pretendente. Casou-se com a UTI. Mas alerta: a vida lá fora existe, só a busca é mais difícil.

Eu a conheci ali, na UTI Cardiológica da Beneficência Portuguesa, nas entradas diárias no quarto para atender Beth, minha esposa, que sofria de um problema renal muito grave, provocada por uma nova batalha contra a lúpus.

Débora carregava o kit de sempre, mas trazia no cabelo um adereço que simbolizava um hábito herdado do pai. Ao contrário dos colegas, que carregavam suas canetas nos bolsos do jaleco, Débora dava uma segunda utilidade à caneta, que reforçava a presilha. Daí nasceu o apelido de padeira. “O pior é que meu pai não era português, não se chamava Manoel e nem tinha comércio”, tenta explicar, enquanto todos riem no quarto e se esquecem, por segundos, onde estão e quais são seus papéis.

Eu reencontrei Débora mais cedo do que esperava. Minha mulher voltou ao hospital. A lúpus, um adversário sem caráter, resolveu atacar as articulações da perna direita dela. Ao me ver atrás do vidro, Débora saltou no meio do corredor, balançou os braços e sorriu. Jurava ser uma visita de cortesia, já que não sabia de Beth na sala de repouso e que uma nova hospedagem na UTI aconteceria naquele mesmo dia.

Débora e Ademar, a versão masculina dela em simpatia, foram os primeiros a nos receber no mesmo quarto do hotel em que ninguém deseja dormir. Conversas sobre as comidas proibidas, as habilidades do pasteleiro da esquina, os canais de filmes abertos na TV e as piadas óbvias sobre o retorno inesperado.

Confesso que me senti confortável com esta acolhida, mas a lúpus poderia nos permitir encontrá-los em outro lugar, ainda que fosse na calçada, ao lado do pasteleiro, sentindo o aroma da carne seca, o sabor favorito do Ademar.

Confesso também que nunca perguntei à enfermeira-padeiro se ela se tornou enfermeira-padrão. Débora é apenas humana, com ou sem títulos. Numa UTI, é o mais eficiente dos medicamentos.

* Texto também publicado na revista do Conselho de Enfermagem do Estado de São Paulo, edição de agosto de 2015. 
 

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