21º dia (Conversas com Beth # 10)


Ilustração: Edmilson Desenhos


Beth Soares

Fiquei 20 dias sem espelho. Não me importei muito no começo. Mas logo passei para a fase da necessidade de pentear os cabelos, que não chegou a ser exatamente solucionada, porque tive acesso – graças ao enorme esforço do meu marido - apenas a um pequeno espelho de bolsa, no qual só via um quadrante do rosto por vez.

Em alguns dias, a necessidade de me olhar por inteiro foi ficando cada vez mais insossa. Eu sentia que estava diferente. Tocava minhas costas, braços pernas e parecia outra pessoa. Mais de 30 quilos – ou litros – distanciavam-me do meu velho corpo. E, surpreendentemente, meu peso não era a prioridade.

Toda aquela vontade narcísica sucumbiu diante da minha vontade de vida. Não quero ser hipócrita e dizer que não me importo de estar feia ou bonita. Continuo, sim, a me importar. Mas, de repente, a beleza mudou um pouco de figura, com perdão do trocadilho. A beleza genuína, eu quero dizer, não a estética.

Sempre reclamei muito do meu corpo: pernas, barriga, formato do rosto, cabelo... procuro e acho mil defeitos. Já senti muita raiva do meu corpo. Por que ele tem que adoecer?

Mas agora, sem espelho, eu olhava meu corpo de um jeito diferente, e era esquisito. Tinha mais verdade. Eu o via de perto, de dentro, por todos os lados. Até que numa madrugada de insônia, eu percebi! Demorei mais de 30 anos, mas finalmente o vi. Cada movimento, cada respiração e batida do coração, cada guerra que trava silenciosa ou desesperadamente, cada esforço para se manter vivo, faz dele uma armadura mais forte. Meu corpo é foda! Desculpe, mas não há outra palavra agora. Pedi perdão a ele por todos os anos de injustiças.

No 21º dia, me olhei no espelho de novo. O que vi me surpreendeu. Me emocionou. Eu tinha um corpo de mãe. Eu era uma mulher recém-parida. Eu não estava mais tão inchada, mas o esticar da pele havia destacado todas as marcas e cicatrizes: de cirurgias, de brincadeiras da infância, de arranhões dos meus felinos pela vida.




Histórias contadas em traços, riscos e rabiscos que só eu tenho. As marcas da minha vida estavam ali, escritas na pele nos mais diversos idiomas, emoções e sentidos. Olhei para minhas mãos e vi os calos nos meus dedos. Tenho calo por pegar errado na caneta para escrever. Até esse meu detalhe eu amei.

Amo ter as marcas que simbolizam os momentos que me trouxeram até aqui. Novas e velhas cicatrizes, fechadas, abertas, gritando e exigindo atenção. Achei tudo lindo! E achei estranho achar isso.

Me vi, por fim, mãe de mim mesma. O tratamento me impede de gerar um filho, mas não me impediu de ser mãe, porque meu corpo quis assim. Ele quis parir. E pariu a mim pela primeira, sexta ou enésima vez.

Sou uma nova pessoa, sem precisar abandonar os antigos lugares que me abrigaram até aqui. Meu abrigo, meu corpo é lindo.

Comentários

Silvia Giraldella Oliveira Leite disse…
Meu Deus!Que coisa mais emocionante. Confesso que até chorei com seu texto.São coisas que a gente não percebe no dia a dia e que vem a tona.Um grande abraço pela sua força Beth.
Silvia (aluna da UATI do Prof.Marcos.)
Beth Soares disse…
Puxa, Silvia, obrigada pelas palavras! Fico muito feliz que tenha gostado.
Um grande beijo!
Beth Soares disse…
Também amo tu, Monikita!