Raiva e melancolia (Primeiro Sexo # 1)



Paula Vinhedo


Este é o texto de estreia da coluna Primeiro Sexo. Apenas um critério de escolha: a visão feminina de mundo!

Vivo cheia de raiva. Quase o tempo todo. Todos os dias. A raiva, para uma mulher de meia idade, sufoca com dores físicas, atazana com desconforto mental, traz cansaço de tudo e de quase todo mundo. E traz também uma melancolia, que se renova e reaparece pela manhã.

A melancolia só não renasce antes de dormir, quando paro por obrigação orgânica. Não renasce porque desmaio, entro em coma profundo segundos após encostar a cabeça no travesseiro. Quando isso não acontece, o escuro esconde as lágrimas de meu marido. Não é necessário preocupá-lo nesta hora. Ele está ciente do que me atormenta há meses e me protege no silêncio.

Tenho raiva de relacionamentos passados. São pessoas que poderiam ter desaparecido com o término de uma história. Poderiam ter compreendido que um cadáver enterrado é um corpo sepultado. Pontos finais podem não ser agradáveis, mas incluir terceiros, quartos e quintos em projetos pessoais de vingança soa sórdido demais até para quem se esconde no manto da santidade. Todos pecam, eu pequei, que se coma a hóstia e diga amém. Que se mude a página da Bíblia!

Espumo de raiva com meu trabalho. Depois que virei uma balzaquiana, percebi que poderia reinventar minha vida. A parte que depende de mim é o menor dos problemas. Sempre trabalhei duro, sempre acreditei que o esforço pode ser recompensado, sempre apostei no diálogo honesto com meus pares.

Não procuro o glamour, sucesso e outras palavrinhas babacas dos gurus corporativos. Desejo somente uma rotina confortável, que me possibilite trabalhar com prazer e amenizar os danos doentios de qualquer cotidiano profissional.

O problema é mais complexo do que reconhecimento, que massacra muitas da minha idade. É a percepção alheia – e que te atrasa – de que meu trabalho é menor, menos importante, que acompanhá-lo é um favor que me fazem. Arte não é favor. É um trabalho como outro qualquer, que exige talento, técnica, disciplina, dedicação e amor. A diferença, pelo que sinto, é que todos sabem fazer o que faço só porque conhecem o produto pronto e podem comprá-lo.

Tenho raiva de mim mesma. Cometi erros que me custam anos para consertar. Das finanças às encruzilhadas profissionais. Das dificuldades em dizer não para amigos e desafetos à valorização subdimensionada de quem eu amo no limite de sentir dor. Fiquei obcecada pela mudança, mas confesso que a fiz porque cheguei ao limite e arrastei pessoas queridas comigo. Hoje, vivo para consertar e construir ao mesmo tempo. Sofro porque raramente a estrada concede duas autorizações juntas.

Luto todas as manhãs para me levantar da cama. Por vezes, a luta dura uma hora ou um pouco mais. As manhãs expõem minhas falhas, meus fracassos, minha impaciência em não conseguir resolver algo que realmente demora meses para extinguir a chama.

Sinto-me paralisada até mesmo quando já me levantei. Vago pela casa, sem a capacidade de organizar quais passos serão dados naquele dia. Abro duas ou três frentes de batalha, dentro de casa mesmo. Opto por atividades mecânicas, como lavar a louça ou pendurar roupas no varal. Guardar as que secaram provocam o mesmo efeito curativo, embora paliativo. É como correr numa esteira, com a diferença de que não preciso pensar.

Nunca gostei ou fui dona-de-casa, mas hoje uma hora de serviço (meu marido possui outras atividades domésticas) age como aspirina para o espírito. Consigo, desta forma, me concentrar melhor no trabalho e anestesiar a melancolia. Os degraus ficam para baixo dos pés ao longo do dia, mas sei que amanhã terei a mesma escada diante de mim.

A raiva, por seu lado, sorri para a melancolia porque sempre está aqui dentro. A raiva se transforma em combustível, alimento para caminhar com as próprias pernas. Estar na meia idade significa, entre outras coisas, que existe outra meia idade a ser percorrida. E não posso virar peso para quem descansa ao meu lado todas as noites. Sorte que ele, em muitas madrugadas, apaga antes do que eu. E não sentirá a ponta do travesseiro se molhar de água salgada.


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