O falcão peregrino


Sandra Silva

O falcão peregrino pediu abrigo em minha casa no domingo. Não qualquer domingo. O céu estava cinza, fechado com cara de bravo. Domingo triste e assombrado por dores, raivas e incertezas.

Aqui, a mesma rotina, com todas as movimentações típicas desse dia de almoço. O que acontecia no mundo, lá fora, não queria saber! Ali estava minha mãe na cozinha, as crianças inventando brincadeiras, as cachorras de banho tomado, eu na faxina da casa, minha irmã na casa dela com meu cunhado planejando a semana. Só a TV de minha sala permanecia desligada, diferente de outros domingos.

A única atenção para o mundo lá fora estava no telefone. Pedia que a notícia não chegasse. Pela conversa com a médica, a notícia não passaria do próximo domingo. Depois do almoço, fui ao quarto optar entre duas tarefas: enfrentar uma montanha de roupas que há duas semanas esperavam pelo ferro ou enfrentar aquela janela que me levaria para o mais cinza dos domingos? Dei ouvidos ao coração e enfrentei a janela do mais virtual de todos os mundos.

Imagens pipocavam sobre o mesmo assunto. Em minha mente, se misturaram com as de um passado ensanguentado, bílis negra.

Perdida nesse caleidoscópio de fatos e história, fui devolvida ao meu quintal pelas vozes agitadas das crianças: “tia, tia, um gavião... Corre!”. Automaticamente, o celular veio a minha mão, e não poderia perder a chance de fotografar um gavião aqui por perto.

Quando cheguei ao portão, lá estava ele, não no ar, mas enrolado em uma toalha nas mãos de meu cunhado. Olhar assustado, visivelmente machucado. Como poderíamos acalmá-lo? Naquela situação quem se acalmaria?

“Estava ali, encostado no muro. Vi algo se mexendo e cheguei perto. Ele se assustou e eu também. Aí ficou me olhando com esse olhão e eu olhando ele, até que chamei o Lima pra pegar o passarinho”. Minha mãe contava como encontrou o falcão peregrino, que até aquele momento nos parecia ser um gavião.

Enquanto o resgate não chegava, ele ficou em uma caixa de papelão coberta por uma toalha, bem quietinho. Apesar da curiosidade, fizemos um trato de não incomodá-lo e deixar a área silenciosa para que pudesse descansar da fuga e recobrar energia.

De minha janela, olhava a caixa de papelão e a movimentação ao redor dela; crianças aflitas para levantar a toalha e dar uma espiadinha, além de água, comida, bolacha, cenoura, tomate, chocolate. Da janela virtual, nem mais via a onda amarela biliar que crescia em número e ódio, sem proposta, sem ternura, sem afeto por aquilo que diziam defender.

Publiquei uma foto no Facebook e descobri se tratar de um falcão. O mais veloz de todos os pássaros conhecido, ali, em uma caixa de papelão coberta por uma toalha. Nada mais triste do que a falta de liberdade e aquela caixa lembrava que muitas prisões não são feitas de grades. Um falcão peregrino, com voo impedido. Uma pessoa presa a uma cama, cujo corpo não mais quer responder a vida.

O telefone tocou e o coração gelou. Do quintal, mais dois olhares aflitos em minha direção. Não era má notícia. A Polícia Ambiental informava que demoraria um pouco por causa de outra ocorrência.

Apesar do trato, não resistimos e nos revezamos para ver como estava o hóspede. Levantar a ponta da toalha era como abrir a janela para o mais real dos mundos. O pássaro parecia mais tranquilo ou resignado, me olhava fixamente, sem medo.

Eram 23h39 quando chegaram para resgatar o falcão, agora chamado de Falquito. Seria levado para o Orquidário ou Parque Anilinas, em Cubatão, e quem sabe em breve ganharia a liberdade e o voo.

Apegados ao Falquito, o vimos sair pelo portão, havia tristeza pela despedida e alegria pela certeza do dever cumprido.

Quinze dias após aquele domingo, o céu continua cinza e chora. Na quarta-feira daquela semana, soube que o Falcão estava livre, voando pelos lados da Rio-Santos e, às 23h39, meu cunhado, irmão de coração, o Jr, aos 49 anos, se liberou de um corpo cujo fígado adoeceu.

Uma hepatite C levou a um câncer, que tornou a passagem dele entre nós bem mais breve do que poderia ser, porém amorosa e cheia de dignidade. Ele pegou carona nas asas do Falcão e foi tocar o seu baixo em uma festa no céu.

Obs.: 25º texto a partir do curso "Como escrever crônicas", ministrado na Realejo Livros, em Santos. 

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