Os malandros, os otários e as bacias


Rua General Câmara, no Centro de Santos, em foto antiga
Ricardo Rugai

Este texto abre a série de crônicas "A vida começa nos (anos) 80". 

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Era dia de pagamento e o Tacape recebeu a bufunfa, uma em cima da outra, dava até gosto de ver. Para dois moleques de 14 anos, aquele salário mínimo parecia uma fortuna nos idos de 1988. Mas a grana tinha destino certo: as contas da casa que ele praticamente sustentava há quatro anos.

Só que o destino foi driblado dessa vez, e a linha reta para casa entortou para o centro da cidade. No fim de expediente, aquele pedaço maldito de Santos começava a ser tomado por personagens avessos à luz do dia. Para nós, andarmos por ali era como ir a um parque de diversões. Ruas escuras, luzes coloridas, mulheres sorridentes e bebida. Não tinha viagem perdida, cada dia era aventura, cada aventura uma história para contar e recontar.

Por ali, e por qualquer lugar naquela época, andávamos destemidos e folgados, certos de que na corrida ninguém nos pegava, desprezando bala como quem tem peito de aço. O fato é ninguém ali pela zona mexia com a gente, mesmo quando merecíamos. Talvez alguns perdoassem a pouca idade, outros suspeitassem que tamanha folga deveria ter costa quente ou que a gente era muito zica mesmo. Tudo isso estava para acabar naquele dia.

Quando me viu na rua no final de tarde, o Tacape já saiu gritando:

– Pescoço, hoje nós vamos zuar! Bora pra zona!

Com o pouco de razão que restava em mim, insisti para ele deixar a grana em casa antes.

— Não adianta, animal. Hoje nós vamos zuar!

Passar em casa era tudo que ele não queria, era risco de por tristeza naquela alegria. Assim que caiu a noite, subimos no trólebus rumo à cidade e, claro, descemos por trás uns dois pontos antes do final. 



O foda era que o Tacape curtia jogar e, andando pela General Câmara, paramos num pequena aglomeração de gente. Seis ou oito pessoas em volta de um sujeito atrás de uns caixotes de feira empilhados, em cima três bacias e uma bolinha macia bem pequena. O sujeito falava mais rápido que narrador de rádio e repetia:

– Olha a bola, olha a bola, o dobro ou nada, pra direita, pra esquerda, olha a bola, cadê a bola, onde tá?

Pouca gente jogava até que um sujeito se encoraja e saca uma nota de 10, acerta e dobra, joga os 20 e dobra de novo. O dono da banca faz cara de bravo, quer ir embora, os otários se animam e entram na brincadeira, uns ganham outros perdem, a maioria dança, claro.

O primeiro corajoso mantém a sorte ao seu lado e atiça os demais:

— Vamos casar o dinheiro? 10 teu, 10 meu, a gente ganha 40!

O que dava nos mesmos 20 pra cada, mas ali naquele falatório, naquele caldeirão, a matemática primária e o que sobrava de razão no povo sucumbiam à ganância e à necessidade de grana.

Lá pelas tantas, o Tacape não resistiu e entrou com 10, prometendo para mim que eram só os 10. Ganhou 20 e se empolgou, ganhou 40 e mexeu no bolo do salário sacando mais 40. Dali pra frente, foi só bica, a carteira esvaziando e um mês de salário sumindo na nossa cara.

O Tacape não parava por nada, certo de que ia recuperar a grana em algum momento. O pior é que a certeza da bolinha estar na bacia era tanta que ele ia seco, e eu acreditava. Quando a tragédia já se consumava, eu saquei o lance, a gente acertava a bacia, mas na fração de segundo em que o Tacape puxava a nota da carteira os dedos ágeis do malaco invertiam a parada e a gente rodava.

Saímos dali com cara de merda, eu vendo meu amigo desolado e o suor de um mês de trampo indo pro saco. Para mim, era a tristeza por ele. Para ele, uma mãe e um irmão mais novo esperando um salário que se evaporou diante de nossos olhos. Para os dois, a dura realidade dos otários. E assim cada um passou a noite em claro pensando na pancada e numa saída.

Rua General Câmara, no dia do "troco"
No dia seguinte, estávamos refeitos e com sangue nos óios. Nos encontramos no trampo com a coisa pensada. Era simples. A gente não era lerdo como uns tiozinhos que nem viam onde estava a bolinha. A gente acertava, mas o fila da puta mudava a porra da bacia na velocidade da luz. Com 10 mangos emprestados, voltamos dispostos a recuperar tudo.

Rodamos pela zona e rapidinho achamos a banca. Estava um pouco mais vazia e o maluco que atiçava os otários para casar a grana ali, na mesma função. O vacilo da noite anterior foi simples, a solução mais ainda: o Tacape apontava a bacia, eu segurava na sequência, enquanto ele sacava a grana.

O malandro da banca apostou a agilidade de seus dedos contra o olho do Tacape e nem criou caso com nosso “método”. Ganhamos a primeira, veio a segunda, a terceira, a quarta, até que o salário todo foi recuperado. A felicidade explodia por dentro.

Mas o Tacape não queria parar e já não controlava a risada. O dono da banca perdia a grana e a moral dele na área para dois moleques de 14 anos. O clima começou a pesar, chegava mais gente, o malandro da banca encrencou com a segurada da bacia, virou discussão, bate-boca, alguns falavam para gente se mandar e nós ali querendo mais jogo.

De repente, uma bicuda faz o caixote voar longe. Do nada, duas peixeiras passaram lambendo nossa cara, a muvuca se desfez em meio a xingamentos e correria. Nós disparamos sem olhar para onde nem para trás, fomos parar no cemitério do Paquetá, ofegando e rindo de alegria. 

Não me lembro se depois dessa ficamos mais na manha ou mais petulantes ainda, só sei que dali em diante amizade foi se tornando irmandade.


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