Carro abre-alas. Enredo sobre a infância Fotos: Matheus José Maria |
Marcus Vinicius Batista
Às 3 horas da madrugada, meus ouvidos zumbiam. O assovio contínuo duraria pelo restante da noite – a previsão indicava mais duas horas de trabalho - e ressuscitaria assim que eu acordasse, mais ou menos na hora do almoço na quarta-feira de Cinzas.
O barulho em formato de chiado perdia a importância a maior parte do tempo. A riqueza cultural prevalecia, desde a beleza de uma fantasia à profundidade dos símbolos de uma comissão de frente. A poesia de uma escola de samba não pulsa na capacidade somente de empolgar pelo samba-enredo, pela suntuosidade de um carro alegórico ou pelo balé dos passistas.
Uma escola de samba, no meu olhar leigo, expõe seu lirismo nos detalhes dentro da avenida, imprevisíveis ou não, no roteiro do desfile ou na espontaneidade de um dos integrantes. Quando isso acontece, o samba dá lugar ao silêncio. É uma parada mais aguda e sensível do que aquela que os ritmistas fazem na bateria para demonstrar habilidade musical.
Durante menos de um minuto, tempo de passagem pela cabine de transmissão onde trabalhava, pude testemunhar o que significa, talvez de forma enviesada, o samba e o Carnaval. Logo após o casal de mestre-sala e porta-bandeira da Mocidade Amazonense, lá vinha o guardião.
A Mocidade encerrava o desfile do Guarujá. A escola, que compete em Santos, cumpria o protocolo de homenagear a cidade de origem, sem compromisso com notas e avaliações de jurados. É provavelmente o momento mais puro de uma festa cada vez mais competitiva.
O guardião caminhava alheio aos rodopios do casal de mestre-sala e porta-bandeira. E pouco se preocupava em manter distância segura do carro alegórico logo atrás, que se arrastava desfigurado pelo tamanho menor da passarela em Guarujá. Aparentando 25 anos, o guardião – assim dizia sua camiseta da escola – nitidamente protegia outro passista, que balançava a um metro e meio do solo. Movimentos repetidos, indiferentes ao ritmo do samba-enredo, cantado de pé nas arquibancadas da avenida Santos Dumont.
O passista não vestia fantasia e não pertencia a ala alguma. Não cantava o samba-enredo nem representava perigo para a harmonia da escola. O passista era um estrangeiro, ainda que seu pai o protegesse no próprio colo e carregasse essa função impressa nas costas.
Alas das Emílias. Homenagem ao alter ego de Monteiro Lobato |
O guardião não olhava para os lados, na máxima concentração e eficiência de seu trabalho. O bebê era precioso demais para permitir um desvio para a arquibancada, que percebera a diferença no desfile. Olhar para quem transmitia a festa, então, soava utópico. No testemunho-figurante do cronista, o que me restou foi mencioná-lo na transmissão, perdido entre descrições simbólicas, análises históricas e reflexões técnicas sobre o Carnaval.
O bebê, na sabedoria sagrada das crianças, seguiu de olhos fechados e ressonando no peito paterno, ciente de que ali quem ditava o ritmo da escola – naquele pedacinho da engrenagem – era ele.
Todas as escolas de samba, no fundo, se parecem. Não por falta de criatividade, mas pela necessidade de cumprir quesitos e disputar notas de jurados. Os décimos de pontos diferem a campeã da vice, a sobrevivente da rebaixada. Décimos simbolizam os detalhes que só os especialistas – que não é o meu caso – compreendem e explicam aos foliões.
Carro alegórico com personagens da cultura pop infantil |
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