Cuba servida à direita: — Vai para Cuba!


Camili Cienfuegos e Che na Plaza de la Revolucion Fotos: Ricardo Rugai

Ricardo Rugai

(Este é o quarto texto de uma série de crônicas sobre a Ilha de Fidel)

Tem sido realmente muito difícil conversar com pessoas “de direita” sobre Cuba. No imaginário delas, Cuba ocupa o lugar estratégico do mal ameaçador a ser evitado. Mesmo que nunca tenham ido a Cuba ou mesmo lido algo de substancial sobre a Ilha, suas opiniões estão fossilizadas em rocha.

Para eles, nada em Cuba funciona, e os cubanos vivem sob um regime de terror totalitário. É inútil qualquer esforço para mostrar que educação, saúde e esporte na ilha, por exemplo, são bem melhores que no Brasil e desconfio que uma viagem à ilha de nada adiantaria: eles já têm a tese, basta recolher as provas.

É notável a dificuldade dos Maniqueus para lidar com contradições. Se eu simplesmente relato algo de positivo, a tendência é me classificarem como “comunista pró-Cuba”, ou seja, você passa à condição de suspeito e tudo que disser dali pra diante será recebido com desconfiança.

Quando, pelo contrário, comento sobre um ou outro problema da sociedade cubana noto certo desconcerto: como lidar com um oponente que se nega a lutar em sua posição de oponente? Tudo tem que ser bom ou tudo tem que ser ruim.

Algumas imagens obrigatórias no estereótipo da direita sobre Cuba são facilmente frustradas. A primeira delas é a ideia de que se vive sob um Estado totalitário e todos se sentem oprimidos. Bom, polícia e exército são bem menos presentes nas ruas do que no Brasil; além disso, eu não vi nenhuma “geral” agressiva.

Nas ruas, é comum conversar com pessoas que criticam e fazem piadas do governo de forma rotineira e aberta. Alguns cubanos usam roupas com símbolos e até mesmo a bandeira dos EUA sem que sejam incomodados pela polícia e, no geral, o grau de participação política da população nos órgãos de poder locais é bem maior que no Brasil.

Casa típica do interior de Cuba
Quem adivinha o comentário?

– Então você quer dizer que Cuba é uma democracia plena? - Não. O poder político é centralizado e hierarquizado por uma cúpula, ainda que embaixo exista participação social. Cá com meus botões fico pensando se o Brasil é mais democrático que Cuba? Quanto à sensação de opressão e medo nas ruas nenhuma dúvida: é bem maior no Brasil.

Tem surpresas pra todo gosto. A ideia de que lá “tudo pertence ao Estado” desmorona rapidamente. O pequeno comércio privado está por toda parte em Havana, roupas de marca e celulares compõem a paisagem. Talvez a maior surpresa para os incautos esteja nos imóveis: são propriedade privada, isso mesmo, propriedade privada! Que assim como aqui pode ser transmitida por meio de testamento, herança ou casamento. Além disso, pasmem, compra e venda de imóveis foi permitida há alguns anos. O mais chocante é que praticamente todas as famílias cubanas são proprietárias de suas casas.

Quando alguém pretende se casar ou sair da casa dos pais, o Estado indica um terreno vago, facilita a aquisição do material de construção e o interessado se vira para erguer sua nova casa. Aluguel é um conceito particularmente difícil de explicar aos cubanos, que arregalavam os olhos quando eu lhes contava que muita gente passa a vida inteira pagando no Brasil.

Um caso que evidencia a profusa capacidade maniqueísta para distorcer nossa compreensão é o Porto de Mariel. Vendeu-se a ideia de que o “Brasil está dando dinheiro pra Cuba”, o que provaria que o PT é sim um governo “comunista”. O tema virou polêmica na última campanha eleitoral e Aécio Neves (lembremos que FHC já emprestara dinheiro a Cuba) aproveitou a deixa, o que destoa bastante de sua irmã, que foi bastante sensata sobre a ilha.

Praia, em Cayo Santa Maria. Ao fundo, guindastes
para a construção de resorts
Ora, quem se informou sobre o assunto (e claro que a maioria não se informou) sabe que o governo brasileiro, via BNDES, financiou uma empresa nada socialista, a Odebrecht, que de fato participou da construção do porto. Até onde sei a malfadada construtora não costuma praticar caridade e adora uma coisinha chamada lucro. O presidente, Marcelo Odebrecht, ironizou o assunto disse que “se o porto será de grande importância para o socialismo cubano, foi o capitalismo brasileiro que mais ganhou até agora”.

Ora, a empresa e o governo brasileiro estão fazendo em Cuba exatamente o mesmo tipo de ação que o governo dos EUA e suas empresas realizaram na ilha até 1959. O objetivo é um só: aumentar sua influência comercial e geopolítica. Capitalistas chineses, canadenses e europeus mantêm projetos na ilha cuja importância econômica e localização estratégica é tão grande que empresas dos EUA, temendo perder negócios, têm pressionado o governo Obama para restabelecer relações com Cuba o mais prontamente possível. Nem desenhando isso entra em certas cabeças.

É risível enxergar “comunismo” onde há uma empresa privada brasileira explorando mão-de-obra barata “estilo China” num porto próximo ao canal que está sendo rasgado na Nicarágua e que será maior que o do Panamá. Então, se você é favorável ao capitalismo ou de direita, deveria erguer um brinde porque aquilo é uma baita ação capitalista apoiada pelo Estado brasileiro.

Por outro lado, há sérias dúvidas sobre as consequências dessas “zonas econômicas especiais” de inspiração chinesa - como é o caso do Porto de Mariel – para a sociedade cubana. Não é fora de cabimento questionar justamente o potencial desagregador para o socialismo cubano desses empreendimentos que introduzem a lógica do capital na ilha. Enfim, Mariel deveria incomodar os socialistas, e não aqueles favoráveis ao mercado e ao capital, mas Maniqueu se mantém firme e forte em sua sanha visceral anti-Cuba e anti-socialista.

Afinal de contas, por que raios a modesta e capenga ilha de Cuba suscita tanto ódio?

É que Maniqueu tem sérios problemas. Mesmo sendo assalariado, se considera “um capitalista” convicto, vive preso no trânsito várias horas por dia, vive desviando dos menores e pedintes nas ruas, vive com medo de assalto e das drogas que rondam seus filhos, vive sonhando em subir na vida e acreditando numa meritocracia que nunca o premia, vive com receio do desemprego, vive para comprar coisas que não precisa com dinheiro que não tem, vive para pagar a prestação e o financiamento, vive com medo do “comunismo” tomar tudo o que tem, vive desconfiado e preocupado em meio à guerra de todos contra todos, vive com pressa e sem tempo para “viver a vida”.

A Virgen de Santa Regla no catolicismo, Iemanjá na Santería cubana

Vive? Sobrevive? É o que ele se pergunta de vez em quanto... E sem se dar tempo para pensar, responde a si mesmo que esta é “a vida como ela é”, que simplesmente “é o que tem para o almoço”, afinal o que mais haveria além do capitalismo? O socialismo? Aqueles regimes que caíram junto com o muro?

Na verdade, pouco importa o que tenha sido o socialismo, Maniqueu precisa dele como o mal absoluto, como um verdadeiro inferno capaz de fazê-lo aceitar o purgatório, porque na “vida como ela é” não existe céu.

— Não gostou? Vai pro inferno, vai pra Cuba!

Por isso, Maniqueu quase enlouquece quando ouve boas notícias da malfadada ilha. Não é preciso a aprovação incondicional, basta mencionar algum aspecto positivo da ilha para ele se retorcer de ódio. Aquela modesta ilha caribenha, de economia agrária e combalida, desprovida de indústria, de fontes de energia e vivendo sob bloqueio econômico, mata a fome, cuida da saúde, educa bem e vive sem medo. Não dá para aceitar isso assim sem mais nem menos, esse maldito espelho de nossa desgraça cotidiana em meio à riqueza da 7ª economia do mundo.

Nessas situações, Maniqueu tem frases feitas que saem no modo automático. Uma delas ouvi repetidas vezes:

— Gosta de Cuba? Porque não muda prá lá?

Quiçá pelo mesmo motivo que ele não tenha coragem de deixar seus amigos, sua família e romper todos os seus vínculos afetivos para morar nos EUA, supondo que seja aceito pelo consulado. Ainda assim, acrescento:

— Sabe que não seria má ideia morar em Cuba por algum tempo... e aí bate um desespero indescritível em Maniqueu.

Felizmente, o mundo não é povoado apenas por Maniqueus, de esquerda ou de direita, e a maioria das pessoas com quem conversei – o que alguns chamariam de senso-comum - tinha uma vivo interesse sobre a vida em Cuba, como se de alguma forma já desconfiassem dos discursos pré-fabricados sobre a ilha. Era a curiosidade de quem sente que a vida podia ser bem melhor. Será?

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