Réplica perfeita



Beth Soares

Na dúvida, comprou mais um. Agora tinha seis pares de sapato amarelo-gema-de-ovo-mole, cor que foi a sensação da última Fashion Week. Já perdera as contas de quantos Christian Louboutin, com suas solas vermelho-sangue, decoravam a paisagem do seu closet de 20 metros quadrados. 

Dona Valdina, funcionária da casa há mais de 20 anos, sempre repetia que aquele quarto dentro do quarto “dava dois” do quartinho dela, no distante e bem real (surreal era só para a patroa) bairro da Água Preta.

No início, Silvana nem ligava, achava até graça do tom que Valdina usava. Mas, depois de um tempo, achou aquilo até aborrecido. Imagina, ter que pensar nessas coisas?! Dava uma coisa no peito, um mal-estar, sabe-se lá... e não tinha tempo para isso. Era uma mulher de negócios. Os próprios negócios. Perder tanto tempo digitando a droga da senha do cartão de crédito com chip já era o ápice do aborrecimento. Não conseguia entender o porquê da invenção daquela merda!

Sacudiu a cabeça levemente para o lado, tentando livrar os cílios alongados (por um personal eye stylist) das pontas da franja. Bufou irritada. As sacolas ocupavam as mãos, mas, mesmo assim, depois de um contorcionismo até charmosinho, tirou o celular da sua Prada e discou (só tocou a tela, na verdade) para o número de seu personal hair stylist.

“Cruuuuuuuuuuuzeeeeeeessss, querida! Que horrrrróóóóóóóór! Tem uma mata selvagem na sua linda cabecinha!”, foram as primeiras palavras de Jimmi Divo, seu cabelei... ops, personal hair sei lá o quê, quando viu sua cliente preferida (era o que ele dizia para ela e para todas) pôr os pés no chão de mármore de Carrara de seu aesthetic center and personal image care.

Um profissional molhou os cabelos dela. Outro massageou o couro cabeludo, com xampu de flor de lótus e essência de macadâmia. Outra funcionária enxaguou e outra trouxe a toalha esterilizada. Um quinto elemento secou.

Jimmi finalmente se aproximou com uma tesoura em cada mão, em seu momento Edward... (a personagem de Tim Burton, que Divo achava MA-GA-VI-LHO-SO e em quem se inspirava). Algumas tesouradas depois, Silvana Marineide, ops, só Silvana, sentia-se outra mulher. Uma mulher mil reais mais pobre (ou menos rica), mas uma diva!

Agora precisava se apressar. Estava atrasada para buscar Chloe Marie. A pequena tinha sido submetida a um botox capilar. Silvana não entendera direito para que diabos existia aquilo, mas uma amiga da power yoga recomendou e... pelo preço, tinha de ser bom. Se o resultado saísse como esperado, talvez pedisse para a babá levar Jacqueline, sua outra filha, de 8 meses, para fazer o mesmo procedimento. Claro, em algum personal baby hair stylist renomado.

Chloe Marie aguardava de chapinha, unhas pintadas na cor semente-de-cerejeira-da-manhã-de-verão, e fitas com estampa de oncinha nas laterais da cabeça. O excesso de laquê a impediu de latir quando viu sua dona, digo, mãe, chegar de braços abertos dando gritinhos agudos.

Passava das oito da noite quando Silvana subiu as escadas do seu triplex e parou na porta de uma das muitas suítes. Tirou seus scarpins Gucci e entrou. Sentiu um alívio delicioso, quase indescritível, ao deixar os pés tocarem o tapete macio de pelo de urso. Falso, claro, porque seria politicamente incorreto ter um desses de verdade. Mas, fazia questão de deixar claro, este era o único motivo para não tê-lo. 

E a réplica era perfeita! Trazida da Europa. Não que não soubesse quais países pertenciam à Europa... apenas não lembrava ao certo de qual país ele era. E preferia não arriscar um nome. No fundo, sabia que havia só um lugar no mundo inconfundível para ela.

O sítio Canteiro da Saudade era um lugarzinho tranquilo. Nasceu ali, pisando no chão de terra batida que tingia seus pés de vermelho. Não que sentisse saudades, imagina! Saudade do cheiro da chuva, do leite fresco que não conhece os limites da caixinha, dos ovos das galinhas que nunca bicaram hormônios? Das brincadeiras na jabuticabeira e do cheiro das suas frutas que escalava com a menina Silvaninha os galhos fortes, numa disputa saborosa até o topo? Não! Uma mulher chique, cosmopolita, não poderia sentir falta do cheiro de bosta de vaca, de um fim de mundo, onde o vento faz a curva.

Abriu a porta e olhou a filha (a humana), que dormia quietinha no berço de madeira de lei, assinado por um concorridíssimo designer de móveis. Pensou que talvez os pezinhos de Jackie (fazia questão de grafar o nome e o apelido da filha igualzinho ao da Kennedy Onassis) nunca fossem sentir a maciez do estrume. Nunca fossem tingidos pela cor daquela terra. Nunca subissem jabuticabeiras, macieiras, mangueiras... Talvez ela nunca viesse a imaginar que as frutas não nascessem em supermercados, lustradas, envoltas em papel de seda, tão lindas... e sem história. Graças a Deus!, disse baixinho para si mesma, cerrando os olhos, um pouco antes da crise de choro.

Não se importou com a maquiagem. Era à prova d’água, de uma marca famosa, fabricada em Paris. Num impulso, ligou para seu personal travel agent para agendar a próxima viagem à França. Tinha de garantir que o estoque não chegaria ao fim antes do jantar do Rotary.

Obs.: Texto publicado, originalmente, no blog Poesia Cotidiana, em 1 de setembro de 2013.

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