Transgressão em gotas


Beth Soares

A manhã era clara. O que não significa que estava ensolarada. Não era este tipo de luz que se podia ver. Era um outro, mais difícil de enxergar e, por isso mesmo, mais especial. 

O velho homem de olhos azuis observava, do alto de seus quase dois metros de cultura e poesia, a menina de olhos de mel. Olhos tristes. Por um momento, no entanto, eles eram só doçura. Não havia lugar para lembranças ruins. 

O pacto entre os dois era sempre respeitado: um dia de alegria, custasse o que custasse. E, por este momento, ela esperava longos dias que se arrastavam pelo chão de seus pensamentos voadores. A sorte é que as almas moldadas na arte sempre se reconhecem. E, ao se encontrarem, podem voltar ao verdadeiro lar por instantes preciosos, ainda que menos longos do que gostariam.

Sua mãe a deixara naquela casa grande com cheiro de avós, derramando sobre ela milhares de recomendações para que evitasse contato com tudo que pudesse ser arriscado. Pobre mãe, parecia não perceber que toda esta precaução era homicida da alegria. Mas na cabeça da menina, arriscado era perder a oportunidade de mergulhar no inesperado. E, para sua felicidade, o avô pensava o mesmo.

E o mergulho incluía desenhos intermináveis e histórias maravilhosas sobre uma tal de França, onde aqueles olhos azuis se abriram pela primeira vez. Fascinada, a menina se sentia em casa, em meio àquela atmosfera que exalava sutileza. O clima de poesia chegou ao ápice quando algumas gotas molharam os vidros da janela. Ambos se entreolharam e compreenderam. A chuva era a contravenção que precisavam. Correram ao encontro dela, que caía gentilmente, como que para confirmar o que dizia o velho francês: ninguém pode passar pela vida sem brincar sob a chuva.

Naquele instante, a menina dos olhos de mel conheceu a felicidade plena. A necessidade de proteger esse segredo das excessivas preocupações da mãe era o condimento que tornava a transgressão ainda mais saborosa. Brincou, encharcou-se, sujou-se, sorriu, gargalhou. Mergulhou naquelas gotas de ventura como se cada uma fosse a única, num deserto feito de nãos. Agora, vivia a profundidade da alegria num outro tipo de negação: o não-limite.

A menina, hoje mulher, viaja nesta cena do passado, talvez a mais bela de toda sua história, enquanto a chuva faz suas lembranças se redesenharem como gravura no presente, tornando-as quase tangíveis. Os olhos se enchem de chuva. Uma chuva doce. Mistura de saudade e de certeza que a alma do velho francês, em algum lugar lá de cima, está derramando felicidade líquida para que ela não construa muros que ceguem os novos e pequeninos olhos de mel, que estão se formando neste instante, pela primeira vez, dentro dela.

Obs.: Texto publicado, originalmente, no blog Poesia Cotidiana, em 28 de dezembro de 2011. 

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