O ouro de Cloanto

Beth Soares

Gosto de gente. De gente que aparentemente não tem nada de diferente para merecer um olhar mais profundo. São justamente essas pessoas que possuem as histórias mais formidáveis.

Foi assim que olhei aquele senhor de cabelos quase brancos. Apresentou-se a mim e às minhas amigas chamando-nos atenção para seu nome. Deixou escapar de seus olhos o orgulho de nunca haver conhecido um homônimo. 




Ao nascer, os pais, que achavam já ter gasto quase toda a criatividade nomeando outros onze filhos com a letra C, descobriram que as profundezas da originalidade não haviam sido totalmente vasculhadas. Inventaram “Cloanto”.

Não nos deu tempo para dizermos nossos nomes, que agora pareciam excessivamente comuns. Não por desinteresse, mas porque certamente seus 72 anos lhe permitiram viver muitas histórias. Precisava usar todo o tempo que dispuséssemos para conosco degustá-las. Sabia que nossa passagem por seu caminho seria breve, então teria que usar aquela tarde para contar, ao menos, as narrativas mais especiais.

Tratou logo de emendar uma pergunta à sua apresentação. Estava diante de universitárias e queria testá-las. Torceu para que não soubessem as respostas. Apostou, inclusive. E perdeu. No fundo, sabia que ganharia muito mais que os dez reais da aposta. A sabatina prosseguiu e o tio-avô de nossa amiga aniversariante demonstrava contentamento, tivéssemos sucesso ou não com as réplicas. Para ele e para nós não eram as respostas que tinham importância. Mas as perguntas.

Elas nos conduziram pela vida do nordestino de Natal, desenhando na atmosfera umedecida pela chuva fina, cenas da aventura extraordinária que tem sido sua vida. Ouvíamos atentas como espectadoras de radionovelas.

Aos 18 anos, Cloanto mudou-se para Santos apenas com o que chama de “PPI”. Diante da interrogação exibida em nossas testas, tratou logo de traduzir a sigla: Pré-Primário Incompleto.

Do trabalho braçal passou, por esforço próprio, ao trabalho intelectual. O medo de perder o emprego que lhe garantia um bom salário fez Cloanto voltar a estudar. Terminou o colegial sem intenção de cursar a faculdade. Mudou de idéia rapidamente quando um amigo lembrou-lhe que o caminho para a universidade não lhe traria apenas um diploma, mas possibilidades incalculáveis de conhecer, superficial ou profundamente, muitas mulheres. Escolheu o curso de educação física, pois julgou ser o mais apropriado para suas intenções. Formou-se, mas não chegou a exercer a profissão.

Quanto às possibilidades com as mulheres, não usufruiu. Seu coração foi roubado, sem chance de resgate, por uma “princesa” de olhos azuis. Mas, como em todo roteiro de histórias de amor, havia um empecilho: ela era namorada de um amigo. Lembrando das palavras de sua mãe, “insistiu, persistiu e não desistiu”. Não sossegou até fisgá-la. E até hoje, 46 anos depois de dizer sim no altar, ainda mantém o mesmo olhar apaixonado de rapaz ingênuo. E é com a mesma paixão e com uma irreverência ímpar que fala de todas as coisas que seus olhos lhe permitiram ver e que a vida lhe permitiu experimentar.

Fala de seus filhos, netos e inúmeras conquistas com o orgulho de quem usou na construção de sua história apenas o suor do rosto e a honestidade. Com emoção, lembra dos dizeres pai, homem talhado na aridez do sertão nordestino, que sabiamente recomendou ao caçula de seus doze filhos ao vê-lo partindo para o sudeste: “Nunca pegue o que não lhe pertence. Ainda que trabalhe numa mina de ouro, antes de ir embora, limpe-se de modo a devolver até o último resquício do metal amarelo que tenha ficado sob suas unhas”. E assim Cloanto fez, por toda vida.

O ouro de Cloanto, muito mais nobre, vem de sua sabedoria. As palavras que saem de sua boca corretas e certeiras não felicitam apenas os teóricos de nossa língua mãe, quando faz questão de deixar claro que “advogado” não é “adevogado”, “cérebro” não é “celebro” e que as “irmãs” nunca poderão ser “irmães”, ainda que já tenham filhos. Seu verbo felicita seus ouvintes pelo conteúdo intenso e próximo de todos nós.

A história de Cloanto poderia ser a minha, a de um amigo, a de um parente ou a sua, apesar de ser só dele. Ela nos faz perceber que a singularidade de uma trajetória pode caminhar junto à sua capacidade de proporcionar identificação. E essa é uma característica marcante da vida de quem, como ele, trama sua experiência com o fio do incomum, e a transforma em algo extraordinário.


Obs.: Texto publicado, originalmente, no blog Poesia Cotidiana, em 1º de julho de 2011. 

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