O envelope e a nova seleção


Marcus Vinicius Batista

O envelope passou por baixo da porta. Não ouvi o barulho, pois estava concentrado em minhas tarefas cotidianas de homem do lar. Lavar roupas, pendurá-las, lavar a louça (e não secá-las), arrumar camas, serviços rotineiros que ignoram férias, folgas e outros benefícios.

Não havia remetente ou destinatário. A primeira certeza: não era conta. Contas, de cara, se definem como tais ao sorrir pelo envelope timbrado. Olhei contra a luz e vi que havia somente um papel dentro dele, bem menor do que o envelope. Peguei uma tesoura na cozinha, cortei uma das pontas, tirei o papel, sem identificação de origem, e o desdobrei.

Daqui em diante, por temer represálias ou pelo desejo de recompensa no além, vou reproduzir exatamente o conteúdo, salvo se foi entregue no apartamento errado. Mas não me arrisquei a perguntar ao vizinho. Ele é meu amigo em rede social, mas não me cumprimenta no prédio. Entendi que só existo na vida virtual dele. 



Eis a carta:

“Caro amigo semidescrente,

Você foi escolhido para ser o semeador destas palavras. Sei que, como crente descrente, você vai desconfiar deste texto padronizado. Mas o que não é padronizado hoje em dia? Não tenho tempo e paciência para personalizar as palavras diante dos protestos e das lamentações da última semana. Até porque o assunto desta missiva é importante, mas estou ocupado demais com outros problemas de ordem étnica em outros endereços.

Outros como você receberam este texto. É um pedido, creia ou não. Poderia utilizar meus representantes por aí, mas confesso que não sei quem acredita na palavra, quem a compra, quem a vende, quem a reinventa como paródia.

Vou ser direto. Vocês perderam quatro pessoas importantes em 10 dias, na contagem de vocês, e me senti na necessidade de justificar estas medidas. Temos uma partida importante. Coisa do Dante, alegre e encantado com o futebol. Para ele, uma partida é capaz de levar qualquer um de cima a baixo, sem escalas. A ironia é que o jogo vai acontecer no purgatório. Campo neutro, sabe?

Como o mundo corre de forma atemporal por aqui, nosso time envelheceu, se é que me entende. Os mesmos atletas: Manuel, Machado, Drummond, Cabral, Guimarães, Alencar. Nossos adversários já conhecem de cor as táticas, as características, os trejeitos de cada um dos jogadores. Mesmo criativos, eles têm limites.

Contratações eram fundamentais. O lado de lá, com a ganância que lhes marca, traz sempre atrações novas. São gurus de autoajuda, ícones do mundo corporativo, filósofos que venderam suas ideias por uns tostões. Não temos como competir com a agilidade financeira do andar de baixo.

Confesso que duvidei do que me sugeriram depois dos 7 a 1. Quase virei minhas escolhas para a literatura alemã. Eles têm diversos craques, como Mann, Goethe, Hesse. Mas também entendi que os brasileiros escrevem, no momento, melhor do que jogam. Foi o ponto que fechou minha decisão.

Só que precisava de diversidade. Versatilidade e jogo coletivo são mantras até por aqui. Não posso contradizer o que outros pregaram em meu nome quando falavam em solidariedade, generosidade, lealdade, mesmo aqueles sujeitos que, por trás de gravatas e versículos, defendem o nosso rival. 



Comecei com o João. Nordestino, ele tinha a acidez dos centroavantes. Pense o jogo politicamente incorreto, com a ironia de quem conquista o zagueiro para depois deixá-lo sentado. Ao mesmo tempo, pode conquistar a torcida e os colegas com o jeito festivo e a fala arrastada dos falsos lentos baianos.

Mas os auxiliares Pedro e Paulo ponderaram sobre a carência de um companheiro de frente. Sangue novo também, de postura semelhante, com execução distinta nos passes. Acho que fui na mosca quando recrutei Ariano. O homem é ligeiro, ainda que treine de chinelas.

Ariano quase me enganou na fala. Quando entrou em campo, lembrava João Grilo, espevitado que só ele nas laterais. Deu trabalho para Bilac, lateral-direito parnasiano até na forma de marcar. Ariano não tem adversário, encara até o mais miserável treino como uma aula-show, daquelas que costumava dar por aí até ontem (outra vez, o tempo estranho a mim, que não é respeitado pelas palavras).

Pensei comigo e concluí que tinha direito a mais dois para reforçar o miolo da equipe. Puxei um meia de ligação (veja como já engano tal qual os professores da beira do campo) com alma de poeta, um sujeito que adorava ipês, crianças, educava com sorrisos. O nome dele é Rubem.

O rapaz está meio resistente. Foi um seguidor meu na juventude, que me abandonou diante das bobagens dos homens. Mas deve jogar. Percebi que os olhos dele faiscaram quando viram quem dividiria as camisas e o mesmo lado do campo. Todos aqui falam que ele é um meia criativo. O único problema é se apegar demais aos detalhes, o velho problema dos poetas e cronistas que formam nosso elenco. Teve um que se distraiu tanto com a bandeira, que elaborou um texto e se esqueceu de cobrar o escanteio.

Para conduzi-lo em campo (jamais controlá-lo), completei a cesta com um meia cerebral, científico no falar, no correr, no passar, no deslocamento no gramado. Ronaldo Mourão é especialista em lidar com quem olha para as estrelas e as vê como versos em dança. Ele era um desses astrônomos que se escondia no rigor e na elegância com que tratava as palavras.

Sei que vocês, recebedores desta carta, são (ou foram) descrentes. É por isso que rezo para que, de uma forma ou de outra, propaguem a palavra. Nada de outra face. Desta vez, precisamos ganhar. Até porque o adversário, maldoso que é, vai entupir o time de volantes-brucutus, para usar um jargão de vocês. Falam que são jogadores modernos, mas correm e batem como o fizeram nas teclas na vida humana.

Atenciosamente,

ELE

P.S.: Estou ciente de que vocês oram pela vinda do coronel. Mas, como acontece quando milhares de vozes falam simultaneamente, não consigo ouvir. Ele não tem o perfil do meu time, queridos. É tão imortal como um marimbondo de fogo, saltitante de vários e incertos rumos, autojulgado o dono do mar, do céu e da terra, pelo menos onde vive. Uma confissão (ou sacrilégio): meu rival disse que sonha com ele vestindo a dez! E do Maranhão, já me basta Aluizio Azevedo.

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