O batismo do avião

Beth Soares

Hã? Como assim? Perguntei ainda sonolenta. Eu não tinha organizado nada, nem meus pensamentos, mal sabia onde estava.

Minha amiga, com uma voz que transbordava entusiasmo, pareceu nem prestar atenção à minha confusão mental e continuou a enumerar, com seu jeito extremamente eloqüente de argumentar, todas as dezenas de vantagens que uma viagem rápida nos traria. Além dos dias distantes do estresse, ela havia conseguido uma promoção imperdível de passagens aéreas. Não gastaríamos com estadia, já que os familiares dela estariam prontos para nos receber. Informou o dia, o horário e quase não me deu tempo para raciocinar. Na verdade, eu não estava mesmo em condições de pensar. E disse sim.

Dias depois, não sei por que, lembrei repetidamente das cenas de um filme sobre premonição, que retratavam um desastre aéreo. As cenas eram tenebrosas. Apaguei-as rapidamente antes que ganhassem vulto. Foi quando caiu a ficha: era a primeira vez, em 29 anos, que viajaria de avião. Senti um frio na barriga. Mas já estava feito.





Chegou o dia. No caminho para o aeroporto tentei relaxar. Cantei músicas para mim mesma... E nada. Tentei lembrar de coisas engraçadas que pessoas me disseram nos últimos dias, ou de alguma piada... Branco total. A cada minuto que se aproximava da hora marcada para a decolagem minha tensão aumentava. E eu não me sentia capaz de mudar esse quadro. Minha amiga e o marido dela se divertiam com o que chamavam de meu “batismo aéreo”.

No salão de embarque a ansiedade era tanta que prendi tudo: a respiração, os pensamentos, até a vontade de ir ao banheiro, que sempre aparece em ocasiões de medo.

Comecei a caminhar. Meus próximos passos me levariam ao avião. Tentei disfarçar, mas acho que estava escrito “SOCORRO” em neon vermelho e letras garrafais na minha testa. Meus amigos riam da minha aflição.

Entrei no avião. Após um cordial boa noite dos comissários de bordo, sentei. Me espantei com o menor metro quadrado por pessoa que já tinha visto em um meio de transporte. Reparei que todos os outros passageiros olhavam para seus minibancos com muita naturalidade, como se o mundo fosse light e todos tivessem acabado de sair de um comercial de adoçante.

Com um pouco da força que havia em meus pulmões (não usei toda para não espremer ainda mais a passageira ao lado, no caso, minha amiga) respirei fundo e tentei esquecer qualquer aproximação mental com a claustrofobia que poderia reforçar ainda mais a imagem de medrosa que eu estava prestes a confirmar para sempre, sem chance de retratação.

A primeira coisa que fiz foi tentar afivelar o cinto. E não tive como evitar o pensamento: isso não vai resolver nada em uma situação de emergência... Situação de emergência, leia-se: queda. Pronto, conectei. Tentei afastar esse pensamento, fazendo o exercício de projetar na mente o oposto. Impossível. Droga de psiquê! Maldita hora que eu pensei na palavra “queda”. 


Agora, ela não saía da minha mente, ao mesmo tempo em que as imagens de vários desastres (agora não só aéreos, mas também naturais), dançavam na minha frente. Tornados, trombas d´água, tempestades eletromagnéticas, seja lá o que isso signifique, me faziam suar frio. Tentei respirar fundo de novo. Não consegui.

Descobri que não sabia afivelar o cinto. Minha amiga, prevendo meu desespero, calmamente me mostrou como fazer. A calma dela me deixou ainda mais nervosa. Olhei para os lados e vi crianças, jovens, adultos, idosos... todos pareciam tranqüilos. Será que ninguém ali estava na mesma situação?

De repente, ouço a voz do comandante. Ele começa um discurso que parecia decorado, ou lido em algum manual. Em certo momento diz que, em caso de pouso no mar, devemos usar os assentos para flutuar. Que bom! Isso significava que, caso eu fizesse parte da ínfima parcela dos passageiros de avião que sobrevive a um pouso de emergência no mar, eu teria uma pequena chance de sobreviver boiando em cima daquele acento, no qual eu mal conseguia me encaixar. Ótimo, porque, apesar de ter nascido numa cidade praiana, não sei nadar. Agora sim, me sentia totalmente segura! Sorri de pânico.





Quando estava quase me convencendo que ficaria tudo bem, ouvi o barulho das turbinas. Pensei em sair correndo, abrir a porta de emergência e pular. Mas eu estava paralisada.

Decolamos. Por instantes pensei: deu tudo certo! Consegui até admirar a beleza das luzes alaranjadas das ruas de São Paulo. Mas a tentativa de relaxar durou apenas alguns minutos. Tudo começou a balançar. Olhei para minha amiga e ela, como se lesse meus pensamentos (ou, quem sabe, novamente o letreiro havia se acendido em minha testa?) automaticamente me disse que estávamos passando por uma turbulência. Obviamente ela disse isso mantendo o mesmo tom de voz e exalando uma calma insuportável.

Ouvi a voz do comandante repetindo, com a mesma tranqüilidade, a frase dela. Olhei pela janela. Péssima idéia. Só consegui enxergar uma densa nuvem acinzentada. Percorri meus arquivos mentais e descobri que mantinha um sem-número de cenas trágicas de filmes que vi ao longo da vida, muito bem guardadas e conservadas em excelente estado. Impressionante como de vez em quando tenho boa memória!

Aos poucos, a calmaria no ar foi voltando até parecer que o avião deslizava suavemente pelas nuvens. Respirei. Não sei se por causa dos seqüentes disparos de adrenalina que agora cessavam, senti um torpor que, aos poucos, foi se transformando em sonolência. E, para minha imensa felicidade, adormeci. Mas não tive tempo de sonhar.

Acordei sentindo uma pressão em todo corpo. Era o momento do pouso. Parei de respirar de novo. Travei todos os músculos, até aqueles que nem imaginava que tinha. Um tranco, e finalmente pousamos.

Pronto! Terra! Agradeci a todos os santos que lembrava e a alguns que, na hora do horror, tratei de inventar. Minha aventura havia terminado e tudo correu bem, apesar de todo esse meu drama.

É, tenho que confessar, sou dramática. Talvez isso justifique a calma da minha amiga, que me conhece como poucos, durante o voo.

Na verdade, desde o início ela suspeitava que, no fundo, eu mal podia esperar pela próxima vez que aquele delicioso pânico me absorveria novamente.

E ela acertou.


Obs.: Texto publicado originalmente no blog Poesia Cotidiana e no site Jornalirismo, em junho de 2011. 

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