Adeus ao jardineiro


Quando entrei na garagem do prédio, o lugar estava vazio. Mas a obra mais recente de Reginaldo de Oliveira falava por ele. Quinze vasos descansavam pelas laterais da garagem. Eram cinco espécies diferentes de plantas. Alguns vasos foram decorados por pedras brancas. Outros, com sapos de madeira, atraíam a atenção das crianças do prédio, meu filho incluído.

Todos os vasos foram pintados de branco, a mão, por Reginaldo. Durante os meses de trabalho, ele reclamava sempre de duas coisas. Reginaldo se queixava de ter escolhido errado a tinta para os vasos suspensos na parede. Teve que pintá-los quatro vezes, mas – assim como os outros materiais – as tintas eram fruto de doações do comércio no bairro. Cabia a ele resolver o problema.

Aposentado da Codesp há mais de uma década, Reginaldo também protestava contra o comportamento de muitos moradores da região onde morava, a avenida Pedro Lessa, perto da faixa portuária, em Santos. “O pessoal joga muito lixo, móveis, no canteiro central”, repetia sempre que eu elogiava os vasos.

Decorar a garagem significava uma reação previsível de Reginaldo. Para evitar brigas, mudar de lugar era o caminho para a vivência em paz. Ele ficou famoso na Ponta da Praia pela mudança no cenário onde vivia. Incomodado com a sujeira e o quadro cinzento de um trecho de três quadras da avenida Pedro Lessa, o aposentado (e paisagista amador) replantou todo o canteiro central.

A rotina de jardineiro se transformou em crônica nesta coluna de jornal. A história chamou a atenção da TV Tribuna. A TV o elevou à condição de celebridade local e garantiu mais estrutura para o projeto dele. Reginaldo pouco se importava com a fama instantânea. Estava contente com as doações dos comerciantes.

Terra, mudas, ferramentas, madeira para o cercado protetor das plantas, material suficiente para dobrar a área do replantio. Um vizinho, solidário à causa, virou auxiliar de jardinagem.

Ser conhecido não alterou nossas conversas. Sempre me recebia na garagem com diálogos sobre o clima. Rendeu-me outra crônica, “O Guarda-tempo”. Além de meteorologista de garagem, com o perdão do trocadilho, ele passava as manhãs e tardes no prédio. Trabalhava na redecoração do lugar – decepcionado com a volta do lixo ao canteiro central da avenida – ou puxava conversa com visitantes e vizinhos.

Quando a garagem o entediava, Reginaldo se sentava na Padaria Barcelona, a cem metros de casa, na esquina da própria Pedro Lessa com a rua Cypriano Barata. Largara a cerveja há três anos. Só o cigarro o vencia várias vezes ao dia.

Na última quarta-feira, o aposentado-paisagista estava sentado numa cadeira vermelha de plástico, do lado de fora da padaria. Às 17h20, dois rapazes chegaram de bicicleta, encostaram na calçada e perguntaram por ele. A dupla mencionou o apelido “Pisa”, que Reginaldo ganhara por conta de uma pequena cirurgia que o fazia temporariamente mancar.

Assim que Reginaldo se identificou, um dos rapazes fez quatro disparos. Dois tiros atingiram a parede. Outros dois feriram o aposentado. O motivo da violência é desconhecido. Enquanto a dupla fugia em direção ao cais, Reginaldo viajava de ambulância para a Santa Casa de Santos. Morreu na mesa de cirurgia, após duas paradas cardíacas.

Na quinta-feira, um cartaz indicava o luto na padaria. Outro cartaz anunciava a venda do ponto. Quando entrei no prédio onde Reginaldo morava para buscar meu filho, a garagem estava tão cheia quanto vazia.

Não havia alguém que me perguntasse sobre o sol, o frio, ou a chance de chover. Mas os vasos estavam em seus postos, vivos para me dizer que eram a obra de Reginaldo de Oliveira, um jardineiro de 65 anos que não pode virar mais um número nas estatísticas de insegurança.

Obs.: Nas demais crônicas, alterei o nome de Reginaldo por conta da timidez dele. Outra crônica foi O Jardineiro Fiel, publicada originalmente no site Culturalmente Santista. 

Comentários