O lugar indigesto


Elenco em ensaio geral no Teatro do Sesc-Santos
(Fotos: Matheus José Maria)

No Teatro do Sesc lotado, assisti à estreia da peça “A terra pode ser chamada de chão”. O espetáculo, produzido por Claudia Alonso e dirigido por Renato di Renzo, marca o início das comemorações dos 25 anos do projeto Tam Tam, um dos símbolos da luta antimanicomial e nascido a partir do fechamento da Casa de Saúde Anchieta. 

A peça é um trabalho de formação de ator. Nela, não há espaço para a dramaturgia convencional. A narrativa é colada por tecidos aparentemente frágeis, mas interligados além das cortinas do espetáculo, no mundo lá fora. A peça exige do espectador a capacidade de decodificar não apenas os figurinos e os movimentos corporais, mas traduzir – a partir deles – os fragmentos de um planeta de distâncias reduzidas, tempos conectados e problemas tão globalizados quanto particulares. 

Peça marca 25 anos do projeto Tam Tam

O espetáculo está impregnado de sutilezas simbólicas. A cada entrada no palco, atores e atrizes exalavam em suas vestes e corpos sintomas de uma sociedade doente. Na visão do grupo, a reflexão é a alma de um tratamento que prevê a necessidade de simbiose entre chagas sociais – por aparência – isoladas. 

Homens desfilam cobertos de lixo ou com máscaras que nos apontam a poluição do ar. Mulheres se arrastam no solo para nos indicar que a água será o ouro do século XXI. Grupos desfilam sobre pés pesados para expor as migrações de um globo tão castigado quando segregado. Uma caravana de gente de branco cruza o palco como se a plateia não existisse. Seriam pacientes psiquiátricos? Ou seria gente normal entupida de pílulas de felicidade?

Renato di Renzo e elenco no dia da estreia

A peça é a metáfora da ausência. Da falta da discussão pública, da negação do preconceito, do delírio em torno da violência simbólica como se fosse inerente às relações humanas. No palco, cenas que nos esfregam a urgência de pensar sobre racismo, homofobia, xenofobia, temas que caíam como bombas a partir de aviões de brinquedo nas mãos de um dos atores em ares infantis. Nunca bombas H foram simbolicamente tão devastadoras para incinerar e mecanizar corpos, ideais e nobres sentimentos.

O elenco, após seis meses de ensaios no Teatro Rolidei, sede do grupo, se reveza em papéis, sem protagonistas, para talvez nos mostrar a igualdade nos obstáculos criativos, pouco importa o endereço do destinatário. Não há estrelas, não há personalismos. Todos respondem como coral: “A terra pode ser chamada de chão” não deve ser entendida de imediato, numa era de urgências de compreensão e descarte de informações superficiais. 


A produtora Claudia Alonso com o elenco

O espetáculo pede digestão, reivindica a maturação de detalhes de cada cena, impressões mínimas que talvez os próprios atores ainda não absorveram por completo. Que talvez ainda residam na cabeça de Renato di Renzo, na crença de que todo espetáculo sempre será incompleto.

A opção pelo texto mínimo provoca, aposto eu, a vantagem de tornar a peça um camaleão de atualidades, que permitiriam novas inserções e alterações periódicas para rediscutir o cenário que a motiva e move a si mesma.

É injusto estabelecer qualquer escala de valor sobre a peça. Aprová-la ou rejeitá-la. Neste sentido, o espetáculo é mais do que conceitual. É uma aula in loco para atores e atrizes. Muitos ali demonstraram, em cena, que o teatro é a porta de entrada para entender um mundo que insiste em fechar a janela a eles. Passaram a pertencer a um tempo histórico que prega, de forma cínica, o não pertencimento. Comunicaram-se praticamente por sinais num universo que banalizou as palavras em sucessivos monólogos.

A lição da noite foi a última página de um livro de mudança. Para o elenco, em definitivo. Para a plateia, depende de quem testemunhou. Mais do que socialização de parte do elenco, a peça nos ensina que teatro é um ato político. Um ato que gera metamorfose em quem o aceita. Aliás, o espetáculo não acolhe despolitizados. Numa época em que o debate público mais se parece com um Fla-Flu, atores e atrizes colocaram para fora gritos políticos, de quem tenta pela arte compreender a vizinhança e se posicionar diante dela.



O resultado não é terapêutico ou panfletário. É, na verdade, de construção de identidade, de quem está em cena, nas coxias ou na plateia. A construção conjunta de um novo texto, de múltiplos desfechos, cujo ponto de partida são os corpos cênicos e seus olhares que habitam os figurinos provisórios de atores e atrizes.

Como disse o próprio Renato di Renzo após o espetáculo, “os loucos devem fazer mais do que pintar. Os loucos devem desejar e desejar os outros.” Num roteiro de vida real onde a normalidade flerta com o padrão e se aproxima da intolerância, a loucura talvez seja a voz que nos faz pensar, dentro e fora do palco.

Na peça, a terra se mostrou indigesta, mas se torna fértil se alimentada pela diversidade humana. Atores e atrizes do projeto Tam Tam são a prova pulsante de que o teatro pode ser o farol que localiza o chão de cada um.

Comentários

Anônimo disse…
Meus parabéns, o modo como você descreveu foi mesmo tocante e tive a vontade enorme de fazer parte disso de alguma forma. Foi uma bela iniciativa no mundo do teatro! Admiro mesmo o instituto, apesar de ter participado de um evento apenas uma vez, foi algo fora de série, aguçou minha vontade de viver em prol do mundo, servir os que merecem. Abração!
Bruna Santana Jacob
maria teresa disse…
muito bem analisado este trabalho do Tamtam, obrigada, reforço teu pensar, teu olhar, sentir.
obrigada
teresa teixeira