Ele, o felino


Um dia de fúria

Nunca tive uma relação convencional com animais de estimação. Nunca dei nome de pessoas. Nunca os considerei bipolares, hiperativos, deprimidos, neuróticos ou em surto. Nunca pensei em gastar dinheiro com escovas de dente, perfumes de griffe, spas, casamentos e aniversários para convidados bípedes que não foram domesticados.

No fundo, de uns 10 anos para cá, passei a me incomodar com o cativeiro. Prefiro peixes em rios e pássaros no ar. Até tolero cães e gatos em apartamentos, desde que a área seja proporcional ao tamanho do bicho. Já vi pitbulls e boxers espremidos em apertamentos de um quarto.

Minha história com animais de estimação começa na década de 90. O primeiro bicho se chamava Anjinha. Nome dado pela minha irmã, Catarina, diga-se de passagem. Era uma periquita australiana – sem duplo sentido malicioso e exótico -, comprada pelo meu pai. E a gaiola? Comecei minha petbiografia com uma ave encarcerada?

Fechávamos as janelas e deixávamos a periquita solta (novamente, a tentação do trocadilho infame). Ela dormia no meu tornozelo. Um dia, escapou por uma fresta da janela. Consegui achá-la no prédio ao lado com pequenas escoriações.

Infelizmente, ela e sua sucessora – de mesmo nome, num arroubo de criatividade fraterna – morreram da mesma causa: parto. Ou ovo entalado. Eu e minha irmã fizemos o funeral na praia, quase em frente ao Aquário. Cavei um buraco de meio metro. Uma caixinha serviu de caixão. Poucas vezes, testemunhei Catarina chorar tanto.

Inconscientemente, troquei seres alados por outros terrestres. Ganhei de presente, anos depois, um esquilo. Nada de primo de Tico e Teco e paixão por nozes. Era outra espécie, uma parente do hamster. E o presente veio com nome: Alaor, para deleite do colega jornalista Luciano Faccioli que, a cada vez que me via, gritava: “Cadê Alaor, o esquilo do amor?” Alaor morreu no verão seguinte, de velhice, como deveria ser com a maioria de nós.

Optei por nova troca. Continuei com seres de pés presos ao chão, mas reduzi a velocidade. A tartaruga veio por conta de uma colega jornalista, que produzia um programa de animais de estimação. Eu namorava a mãe dos meus filhos, que também escolheu o nome pomposo para o jabuti: Maricota.

Quando casamos, fizemos mais do que juntar escovas. Juntamos tartarugas. Ela tinha a Quica. As duas conviviam bem, em ritmo alucinante. Como dizia uma amiga: “tartaruga é um bicho empolgante. É ótimo quando você chega do trabalho. Ela corre até a porta, leva o jornal, sobe nas suas pernas, faz festa para você.” Quica e Maricota até tentavam me recepcionar de maneira efusiva, desde que avisadas uma semana antes.

As tartarugas foram embora, assim como o casamento meses depois. Doamos a dupla para uma escola, onde estudavam dois filhos de um casal de amigos. Lá, havia terrário e gente para tratar bem delas, além de que as tartarugas ajudavam nas aulas.

No entanto, Quica e Maricota foram vítimas da violência urbana. As duas foram sequestradas, com intervalo de uma semana. Resgate nunca foi pedido. A polícia nunca foi procurada. Os sequestradores seguem impunes. Nunca mais as vi.

Depois de três mortes e dois crimes sem solução, decidi me manter solitário na selva. Foi assim por anos, até maio do ano passado. Beth, minha mulher, vem de uma família cuja linhagem é felina. Há dois gatos na casa dos pais dela. Havia uma terceira, mas faleceu de velha. Nina, nome de gente, saiu do filme Cemitério Maldito ou da série The Walkind Dead, de tão esquálida. 

Olhar Gato de Botas

Beth conseguiu – via doação – um gato ainda filhote. Tentou dar um nome bem classe média, com ares gringos: Lui. Meu filho Vinicius, de 4 anos, tentou uma variação fonética, puxando para o francês: Luen. Mas o próprio gato se recusou a atender pelo nome burguês. Acatou minha sugestão, diante do óbvio.

Felino, sua alcunha mais popular, é temperamental. De vez em quando, alguém diz: “ele é bipolar ou hiperativo.” Felino é o parceiro perfeito. Somos indiferentes um ao outro a maior parte do tempo. Ele dorme, eu trabalho em casa. Não há vice-versa. E quando eu durmo, ele também.

Come a mesma comida todos os dias e se contenta com água. Não precisa passear. Não gastamos com coleira. Não pede escovas de dente, spas ou roupas de griffe. Ainda não fez aniversário e, castrado, preferiu não se casar.

Às vezes, penso que ele merece nome e sobrenome. Poderia ser Lui Felino, mas me vem à cabeça Lui Ferrigno, o ator que fazia o Hulk na série de TV. Animais e seus trocadilhos.

A melhor solução talvez seja a proposta por Vinicius. Andando no calçadão da praia, ele me falou: “Pai, queria ter um cachorro. E o nome dele será Felino.”

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