A ditadura das aspas

Sempre algo a declarar

Leio dezenas de matérias por semana. Várias delas me fazem lembrar de Fernando Collor de Mello. O senador alagoano, quando era presidente, disparou uma das frases mais fortes da história política brasileira. “Tenho aquilo roxo”. 

A declaração é um dos casos raros em que as palavras de uma fonte se transformaram em manchete de jornal. Secas. Cruas. Definitivas. A anatomia de Collor nunca me interessou. Recordo-me dele porque o Jornalismo atual caminha pelo sentido oposto das palavras de impacto.

As aspas foram banalizadas, desgastadas a ponto de tornar uma declaração irrelevante, próximo de um relatório que descansa na mesa da burocracia. O abuso tem um nome há anos, sem autoria conhecida: jornalismo declaratório, vício recorrente nas redações e nos cursos que almejam formar repórteres.

As aspas se transformaram na principal muleta de um jornalismo deficiente, aleijado pela frágil checagem, pouca quantidade de informações transmitidas, transferência de responsabilidade diante das fontes, entrevistas sem críticas, padronização de textos e inércia de sentidos do repórter.

Abusar do palavrório alheio é um mecanismo eficaz de se esconder as falhas de apuração e checagem. Falas colhidas por colegas são reproduzidas, muitas vezes, sem o devido crédito. Mais do que cópias, há a caracterização de “furto intelectual”.

O editor de um site de um grande jornal de São Paulo soube que a concorrência havia publicado matéria sobre a contusão de um jogador de futebol. Ele pediu a um dos repórteres que “reescrevesse” a matéria. O repórter ainda perguntou quem deveria ouvir. O editor reforçou a ordem para que o texto fosse reescrito. Uma maneira sutil de copiar e colar. Velocidade e audiência como desculpas do deslize ético.

O jornalismo declaratório permite a muitos repórteres, em veículos universitários ou comerciais, crerem que a informação pode ser colocada em segundo plano, como se não fosse ingrediente essencial para o exercício da profissão. Entupir o texto com blabláblá de fontes – muitas vezes, uma só – dá a impressão de que o jornalista recebeu salvo conduto para não levantar mais nada sobre o assunto ou conferir o que o entrevistado disse com suposta propriedade.

Aí entra o terceiro ponto. Quem disse que se apoiar nas declarações da fonte nos exime de responsabilidade sobre aquilo que publicamos? Talvez a lição mais perversa e promíscua do ensino de Jornalismo se apoie na frase: “Coloque na boca do entrevistado.”

Transferir a culpa pelos erros é prática recorrente de quem abriu mão do papel como intermediário entre acontecimentos e público. Depois não conseguimos entender – ou fazemos cara de natureza morta – quando percebemos que as informações passaram a ser geradas por fontes, público, construtores de imagem, assessores, fãs e outras espécies que habitam o zoológico-mídia.

Parte dos veículos atirou na lata do lixo – e se agarra na audiência pontual como justificativa – a arma que diferencia repórteres: contexto. O milagre da multiplicação das aspas contamina a capacidade de interpretação, de tradução do mundo que um contador de histórias deve carregar consigo.

Em grandes jornais brasileiros, virou moda a publicação de depoimentos. O recurso funciona quando acompanhado de uma introdução; caso contrário, permite que um auxiliar administrativo transcreva a gravação, sem indicar onde entrou o repórter nesta história. É a reprodução do eu, literalmente em primeira pessoa.

A praga das declarações em excesso também funciona como efeito colateral das entrevistas sem preparo. Vale o lema: “Pergunto qualquer coisa, ouça o que for possível.” Fontes deitam e rolam, dizem o que querem, fogem das questões, e o resultado final é um relatório acéfalo do discurso expelido, o que inclui reprodução de jargões e gírias, ainda que o público não as compreenda. Uma editora da Baixada Santista recomendou a um de seus repórteres que não prestasse atenção nas palavras do entrevistado e que se preocupasse com a pergunta seguinte.

As aspas entregam, acima de tudo, quem somos e como fazemos Jornalismo. Muitos repórteres poderiam trabalhar descalços porque jamais gastariam sola de sapato, parafraseando Ricardo Kotscho. O carpete ou o piso frio das redações não provocam arranhões, unhas quebradas ou calos.

As aspas, na prática, camuflam a ausência dos demais sentidos do repórter. Mas como ele poderá exercitá-los se não vê o entrevistado? Como sentir cheiro ou tatear em ambientes que ele desconhece porque não saiu da redação? Matérias impregnadas de declarações indicam, em outras situações, o pior: nem por telefone houve conversa. O repórter enviou lista de perguntas (um questionário, sejamos francos) e recebeu as respostas, prontas para a construção final do texto insípido, incolor e inodoro.

O formato do Jornalismo declaratório é filhote bastardo da padronização do texto nas redações. É óbvio que existem veículos que preservam e valorizam o texto autoral. Mas, via de regra, sobressai o repórter-robotizado, sujeito que não sente, não se espanta, não se emociona. Apenas repassa, tecnicamente, a indiferença.

As aspas são elementos coadjuvantes da reportagem. Indicam o alicerce da matéria: gente! Uma frase de um entrevistado reforça a trajetória narrativa do repórter. Mas o que tenho visto, como instrumento rotineiro, é a sucessão de frases das fontes que, juntas, chegam a somar dois parágrafos ininterruptos. Ou seja: oito, dez linhas sem uma sentença de conexão elaborada pelo jornalista. A matéria virou um boletim de ocorrência enfeitado e perfumado?

As aspas representam, claro, apenas um tom da aquarela de desvios no jornalismo contemporâneo. Mas elas são sintomas da falta de um pouco de cor para muitos jornalistas quando se sentam para escrever. Seria uma pitada de roxo nas palavras?

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