Meninas negras não brincam com bonecas pretas

Gravação do clip Falsa Abolição. Foto: Dino Menezes

Joyce Fernandes, com seu nome de certidão de nascimento, é uma anônima no movimento Hip-Hop. É um fantasma entre MCs e compositores de rap. Ninguém sabe quem é ou ouviu falar dela. 

Quando entra em sala de aula diariamente, a professora Joyce é uma celebridade entre seus alunos, não apenas pelas suas roupas, que dançam entre a cultura africana e frases de denúncia ao racismo no Brasil. Joyce altera o cotidiano dos estudantes nas aulas de História, no Colégio Exemplo, no Humaitá, em São Vicente. Lá, ela os presenteia com palavras firmes, politizadas, coerentes com a rapper que aflora além dos muros da escola.

A questão é que, desde maio, tanto a artista como a professora não entendem direito o que está acontecendo. Joyce Fernandes, a Preta Rara, agradece sempre, sorri até para quem não conhece, mantém a serenidade e a educação que a fazem uma dama em um mundo dominado pelos homens.

Entre julho e a primeira metade de agosto, Preta Rara subiu ao palco 15 vezes para shows. Cantou com Criollo, um dos principais representantes do rap atual no país, em maio, no Sesc de Santos. Conheceu, há 30 dias, um de seus ídolos, Afrika Bambaataa, que levou para casa uma versão do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), pesquisa sobre a história do rap na Baixada Santista.

Ao dividir o palco com Criollo, Preta Rara viu o mar se abrir. Recebeu o convite para gravar o primeiro clip, ao lado da parceira Negra Jack. As duas formam a Tarja Preta, a primeira dupla de rap feminina da região. O convite foi cristalizado na apresentação seguinte, em um ato das Mães de Maio.

Em duas semanas, a primeira reunião com a turma da Conceituall Estúdio, responsável pelas gravações. Falsa Abolição, uma das primeiras músicas da Tarja Preta, se transformou em clip após quatro dias de filmagens em vários locais, entre escolas de teatro e casas noturnas. Parte das gravações aconteceu na Zona Noroeste e reuniu cem mulheres. O clip é o filho que ambas aguardaram por cinco anos. 


Escute a faixa Falsa Abolição!

Preta Rara, assim como Negra Jack, tinha várias credenciais para derrapar na curva. Mas ela tem a mania de andar pelos caminhos mais longos. Estes desvios teimosos provam que profecias sociais não passam de charlatanices futuristas.

Joyce trabalhou pela primeira vez aos 13 anos. O emprego não era remunerado. Na prática, um trabalho voluntário para auxiliar a mãe, que limpava banheiros em quiosques da orla da praia. O pai trabalhava para os Correios.

Antes de ser Preta Rara, a aluna Joyce Fernandes passou por escolas públicas e se tornou a primeira da família a alcançar o ensino superior. Formou-se em História na Universidade Católica de Santos, em 2011. Sua apresentação de TCC alterou o cotidiano da instituição por uma noite. Mais de 60 pessoas se espremiam na sala 315, muitas de pé, para ouvir a trajetória do rap caiçara, com direito à música no final da apresentação.

Preta Rara e a parceira Negra Jack se conheceram numa locadora que frequentavam, na Área Continental de São Vicente. A rivalidade fruto da desconfiança hoje é uma relação fraterna, umbilical. E as escolhas de ambas as uniram para contornar um cardápio de preconceitos e intolerância.

As duas residem em bairros de periferia, cercadas pela ausência de infra-estrutura e, por vezes, reféns de surtos de violência. Ambas são negras e vieram de famílias pobres. Optaram por demonstrar sua identidade cultural nas roupas e nos cabelos. Eram cartões de visita que agiam, involuntariamente, como para-raios de gente que se julga civilizada.

Preta Rara, certa vez, aguardava para atravessar a rua em São Vicente, quando um carro parou perto dela. Ela se aproximou do veículo, na certeza de que seria alguém em busca de informação. Com cabelos dread e vestida com roupas de origem africana, ouviu da passageira: “Macumbeira!”

O rosário de preconceitos também aconteceu no mundo do rap. Elas integram uma lista restrita de mulheres que começam a desbravar um terreno controlado por homens. Muitos artistas do movimento Hip-Hop, aliás, ainda insistem em exercícios contínuos de machismo em seus clips e, principalmente, em suas letras.

Preta Rara e Negra Jack também sofreram com provincianismo. Se Preta hoje coleciona apresentações dentro e fora da Baixada Santista, ainda recebe – eventualmente – convites nos quais cachê é palavra proibida. Música como sinônimo de caridade, não para movimentos sociais, que elas atendem com prazer, mas para pessoas que lucram na bilheteria. Em São Paulo e no interior do Estado, o rap complementa a renda de professora. 

Preta Rara e Negra Jack, a Tarja Preta

Depois de conseguiram espaço no palco, as duas tiveram que provar que as temáticas de suas letras também eram importantes manifestos sociais. Discutiam o passado histórico da mulher brasileira, falavam de amor, colocavam na parede o machismo, o consumismo e a exploração do corpo feminino. Nadavam na corrente contrária à ostentação material e, por vezes, à violência urbana.

Preta Rara, neste momento, voa sozinha. Negra Jack teve uma filha, Isadora, e está em licença maternidade. A menina, inclusive, faz uma participação especial no clip Falsa Abolição, envolvida nos braços da mãe.

O reconhecimento de anos de trabalho estará materializado em dezembro, quando Preta Rara colocará na rua seu primeiro CD solo, Audácia. A primeira música de trabalho, Conto de Fadas, está disponível na Internet. Nos próximos 30 dias, Preta se apresenta em São Paulo, Santos, Campinas e Marília.

Preta Rara, durante a semana, permanece Joyce Fernandes, a professora de História. Nos finais de semana e eventuais noites de segunda à sexta, Joyce cede o lugar à rapper preta em sua plenitude.

O dinheiro, apertado para as contas do mês, ainda está no ensino, mas a satisfação de ter voz e o discurso de lucidez social não desgrudam da mulher que, independentemente do nome, reverteu um rosário de prognósticos que insistiam em tentar derrotá-la.

Obs.: Texto publicado originalmente na coluna Entrelinhas Caiçaras, no site Culturalmente Santista. 

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