A matemática da UTI

A UTI é um lugar de espera. Depois de quase um mês visitando-a diariamente, você aprende que a UTI é também um endereço onde a humanidade mede forças com a matemática. Paciência, resignação, indignação e solidariedade são elementos de resistência contra os números que preenchem as paredes brancas, os corredores beges e as luzes 24 horas. 

Minha mãe, por conta de um enfarto e de complicações respiratórias provocadas pela chamada pneumonia de UTI, está internada há 26 dias. Para encontrá-la, apenas meia hora de visita diária para duas pessoas, sem revezamento, tão comum nos quartos de hospital.

A espera e a matemática marcam todas as etapas do ritual de visitação. Os números do relógio apontam, com o rigor de estação de trem, o horário de entrada. No térreo do hospital, a repetição dos mesmos números: a carteira de identidade, o número da ala. Recebemos o adesivo que estampa no peito o número do lugar para onde iremos, guia para os ascensoristas, e o número do registro daquele dia.

17h30 é a precisão numérica que determina a presença de todos os visitantes no corredor do 3º andar. Levo jornais e revistas para combater a espera. Ler distrai e me faz esquecer a passagem matemática do tempo. Neste caso, tão arrastada quanto a percepção de uma criança na sua primeira viagem de carro. A visita, de fato, nunca chega.

No entanto, as palavras dos jornais são flexíveis demais para derrotar a exatidão numérica. Notícias são abandonadas pela metade quando o relógio grita por atenção. Três minutos atrasados. Hoje, estourou 18 minutos. É a quarta vez esta semana. O ar do corredor onde todos compartilham sofrimentos pesa nas costas. Sei que sairei dali exausto, como se tivesse ficado um dia inteiro sem dormir.

Quando uma das portas se abre, todos se reúnem em semicírculo, forma geométrica que nos mostra que a lista de nomes será recitada. A voluntária do dia ou uma das enfermeiras dita os nomes dos pacientes. Entramos de dois em dois, vestimos os aventais descartáveis, e formamos uma linha de números em frente à pia.

Todos ali são iguais diante do mesmo ritual: despejar o sabonete em uma das mãos, lavá-las em água corrente, retirar o papel que as enxugará, apertar a alavanca na lata de lixo e despejar ali o papel encharcado e em decomposição. Tão obrigatório quanto mecânico e silencioso.

Dali, é atravessar o corredor até o leito de quem anda sobre a linha do estado grave. Depois da saudade resolvida por sorrisos paliativos e palavras calculadas, os olhos percorrem o maquinário que preservam, prolongam ou empurram o paciente para uma nova vida, uma vida fora dali, no paraíso do quarto ou da enfermaria.

Fazemos cálculos no piloto automático. Os batimentos cardíacos estão melhores do que ontem. A pressão mudou, ligeiramente mais alta, talvez, mas dentro do normal. O ritmo respiratório diminuiu um pouco. Tudo fora de contexto, mas útil para nos colocar como parte daquele universo.

Olho no relógio de parede, que anda matematicamente ao contrário, na visão de quem espera pelo boletim diário do médico, além de torcer para que as leis do tempo se alterem e permitam uma visita mais longa. Se lá fora o tempo deveria encurtar, na UTI qualquer rabicho de segundo é alegria.

Os olhos escapam para as camas da mesma ala. Minha mãe convive com mais três leitos. Neste tempo, pacientes mudam de rosto, de cor da pele, de origem geográfica, de enfermidades. Mais detalhes seria invadir a vida de alguém que já foi invadido por tubos, agulhas e outros instrumentos médicos.

Observo os números das máquinas alheias, sem esperar por conclusões, sem me lembrar de dados anteriores. Uma observação que, na prática, se desfaz em si mesmo. Nem a luz vermelha piscante foge de ser mastigada pela rotina de remapear um espaço que se tornou familiar.

As mudanças, claro, não são matemáticas. São humanas, quando se vê que o colega de UTI não é mais o mesmo. Mudanças, na maioria dos casos, representam – infelizmente – notícias ruins e definitivas. E pequenas vitórias quando se sabe que alguém levou mala, cuia, soros e dietas especiais para o quarto. Nunca mais o veremos, mas ele induz o nascimento da pergunta: seremos os próximos?

Independentemente do destino, na UTI não se comenta sobre o destino alheio. Não parece ser somente uma postura ética, mas também uma forma de não se cutucar o sofrimento. Não é momento de dividir dores, e sim de separá-las em compartimentos particulares. Comentários, só da porta para fora, ainda que superficiais.

Quando a enfermeira de lenço vermelho na cabeça surge no final do corredor, não há ordem que altere o produto. Os números do relógio são implacáveis. Meia hora. Fim de visita. Usamos regras de arredondamento, tentamos alterar os fatores para que possamos ficar mais alguns minutos. São outros olhares, outro beijo, outro aceno de mão, novas (repetidas) palavras de conforto que combatem a impotência diante de um tratamento no qual sua voz de visitante é igual a zero. Dizer eu te amo é ato de resistência.

A saída de UTI é calculada. O caminho de quem fez e refez contas durante quase um mês. Tomar o elevador. Virar à esquerda. Arrancar o adesivo do peito e entregá-lo ao porteiro. Às vezes, um gole de água no bebedouro para espantar a secura das expectativas. Disparar porta afora para respirar e arrancar as tabelas e os gráficos da dor que pressiona a coluna.

O ritual seguinte é digitar números e avisar as pessoas próximas de que a equação fechou por mais um dia. E tentar, com operações elementares, programar as próximas 24 horas. Até às 17h30 de amanhã.

Conviver com a UTI é um exercício matemático, no qual torcemos para que o resultado autorize novas contas na folha de papel. Subtraimos da memória os corpos que saem embalados em lençóis, que dividirão o peito de parentes e amigos em pedaços. Apagamos da memória para que, no fundo, nos sintamos aliviados porque a notícia ruim não nos alcançou.

Ao sairmos de lá, sempre no início da noite, somamos o tempo de permanência na esperança de que ali a vida de minha mãe se multiplique. Entre tantas contas, aprendemos a prestar atenção em todas as fases da equação que nos empurra adiante, com os olhos fixos no resultado final. Doidos para que as operações possam ser repetidas no dia seguinte, com a espera da alta e o alívio da liberdade matemática.

Tenho que reconhecer. Humanidade e matemática não são antagonistas. A matemática me permite racionalizar a dor, mas também me coloca de pé, refazendo os limites da contabilidade humana.

Comentários

Beth Soares disse…
Me emocionei. Realmente, só quem vive esta experiência sabe do que você está falando com tanta propriedade e sensibilidade! Belíssimo texto.
Beijo.
Ana Rosa disse…
Tb me emocionei! Consegui fazer essa via sacra, em conjunto com suas palavras...Texto forte, realista. Parabéns! Bjs
Unknown disse…
Marcão, se falar que sei o que significa tudo isso, é mentira. Nunca vivi essa cruel matemática. Parabéns pelo texto, emotivo e ao mesmo tempo profissional.Fique tranquilo que em breve ela estará no paraíso, que será o quarto da enfermaria.
Sueli Correa disse…
A sua dor é tão palpável que a gente tem vontade de pegá-la nas mãos e jogar longe. Ao mesmo tempo, vontade de dar uma boa notícia: olha, foi só um pesadelo, sua mãe tá em casa, esperando para o jantar.
Torço por um final feliz!