Escravos da maratona


Encontrar outras pessoas no dia-a-dia, sem o desejo de conversar com elas, envolve duas estratégias para evitar contato. A primeira delas é antiga e mecânica. Basta perguntar “tudo bem?” sem diminuir o ritmo da passada. A tática também inclui contato visual mínimo.

Do outro lado, virá uma resposta não menos automática, nem sempre seguida de interrogação. O encontro casual de mínimo interesse mútuo significa somente o resquício de civilidade que esconde nossas selvagerias nos detalhes cotidianos.

A segunda estratégia finge ser um pouco mais amável, mas, no fundo, se limita a atender às nossas necessidades de parecermos bem. No caso, de parecermos ocupados, atarefados, reconhecidos; acima de tudo, importantes.

Eis a resposta: “Na correria!”. Se quiser ênfase na imagem de operário-padrão, acrescente: “Na maior correria!!!”

Adoramos a aparência de produtivos. Realmente, trabalhamos demais e pagamos um preço alto por isso, enquanto recebemos de menos. É a lógica do sistema econômico. Só que não há grandes novidades. Mas, na era da imagem, nos sentimos na obrigação de parecermos úteis, cheios de compromissos e, ao mesmo tempo, necessitamos assassinar o ócio.

Um amigo paulistano reclamava que, aos domingos, desejava ficar em casa sem fazer nada, como um lagarto ao sol. A esposa o arrastava para alguma atividade física no Parque do Ibirapuera. No final das contas, ele não queria ver ninguém e muito menos ser visto. Na prática, percebia que a esposa se sentiria culpada se não houvesse algo a realizar, além de alardear o feito para as pessoas com quem conviviam.

A correria precisa de publicidade. Não basta correr, tem que gritar durante a maratona. O marketing pessoal, uma das perversões da aparência, é fundamental para que o sujeito construa uma aura de imprescindível. O manto do insubstituível envolve contar aos outros – que parecem poucos interessados em ouvir – as realizações do capítulo anterior de nossas vidas, mesmo que a narrativa seja sem graça e previsível, como a maior parte do tempo em quaisquer biografias.

Correr demais implica em perda de audição. Perdemos – se é que tivemos – a capacidade de dialogar, de se interessar por aquilo que o outro tem a dizer. Fingimos ouvir, enquanto pensamos nos próximos itens da lista de afazeres. Aliás, muitos morreriam se perdessem a tal da check list (denominar em inglês valoriza o objeto, claro).

A conversa se transforma em dois monólogos, por vezes repetitivos porque as obrigações se assemelham, e as pequenas diferenças se perdem no excesso de saliva gasta. O diálogo, como elemento de aprendizado ou simples troca de ideias, está morto.

Optamos, quando escravos da produtividade, em subir no ranking da quantidade de pontos, o que reduz à vala comum as cenas especiais da nossa existência ordinária. Corremos, mas será que vivemos? Aceleramos, mas será que entendemos o que se passa conosco? Entre a lebre e a tartaruga, ficamos com quem ao deixarmos de refletir sobre os caminhos?

Na propaganda da correria, os fatos não necessitam de comprovação. Vale o discurso, prevalece o espelho da autorreferência. É o caso de uma ex-colega de trabalho que nunca podia ajudar na realização de tarefas. Ela sempre alegava que a correria a atrapalhava até que se descobriu que o corre-corre não saia do triângulo casa-academia-casa do namorado. A propaganda enganosa só pôde ser combatida com o silêncio, diante da real crença de que as tarefas a consumiam.

No último domingo, o jornal Folha de S. Paulo publicou matéria sobre a última moda em empresas dos Estados Unidos. Trabalhar em cima de esteiras faz com que os empregados mantenham a produtividade e se mantenham em forma. Os médicos – como agravante - atestam a prática como saudável.

A única queixa dos empregados, contentes com a aparência de produtivos e saudáveis, é que não dá para escrever direito em cima do equipamento, que vem adaptado com uma mesa. A ironia é que estes sujeitos, literalmente, podem dizer – quando encontram alguém – que vivem na “maior correria.”

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