O plantador de sementes


Quando você tem o primeiro filho, o amor te corta sem anestesia, no limiar da dor insuportável. Quando o segundo filho chega, nasce a certeza de que as noites de sono nunca mais serão completas. Quando ambos estão juntos, cresce a confirmação de que dois braços significam trabalhar no limite do descontrole. Quando eles estão com você, a convicção de que cada experiência deve ser vivida, de que cada fase exige adaptação sua para acompanhá-los.

Vinicius está com três anos. Fala como se fosse personagem de desenho animado. Absorve palavras como se o Bob Esponja estivesse encarnado nele. Armado de teias imaginárias, adora se apresentar como Ben 10 ou Homem-Aranha. Quando você o chama, costuma dizer: “Estou a caminho!” Ou quando vê um grupo de jovens na rua: “pai, os caras estão nos seguindo?”

Ao te contar uma história, pede confirmação: “Você entendeu?” Outro dia, contente, disse para a avó: “Vovó, você é muito aquática.” Uma ligeira gafe do computador em carregamento acelerado.

Na semana passada, sentamos para ver um filme. Era Lôrax, uma animação com mensagem ecológica. Conta a história de um menino que vive numa cidade artificial, onde o ar fresco é vendido em frascos. Irrequieto, o garoto escapa da cidade e descobre um senhor que vive isolado no meio de uma terra arrasada, cinzenta e estéril. Ali, é convencido pelo senhor que precisa buscar a última semente e plantar uma árvore no meio da cidade.

Acompanhamos a história com refrigerante e pipoca, como mandam as regras do ritual. No final do filme, Vinicius estava agarrado ao balde de pipoca, catando as sobreviventes em meio ao monte de milho que não havia estourado.

Peguei o balde e guardei comigo. Ao final do filme, Vinicius se levantou e apanhou o copo de refrigerante, com dois dedos de água gelada. Era gelo derretido, final de feira. Acreditei que ele fosse tomar a água. Disse que não podia. Ele repetiu o gesto. Tornei a dizer não.

Vinicius se afastou do copo, colocou a mão dentro do balde e apanhou um punhado de milho. Virou-se para o copo e fez o movimento de jogar o milho dentro da água. Chamei a atenção dele, que me respondeu:

— Pai, vamos plantar a semente na água para virar árvore.

A gargalhada foi geral. Logo depois, as cicatrizes que não latejam. Sempre achamos que crianças pequenas, por causa das limitações de linguagem, estão entorpecidas ou ficarão indiferentes aos conteúdos que passamos para elas. Ou que a deixamos expostas, como se os efeitos correspondessem a placebos audiovisuais.

Vinicius digeriu, a seu modo e velocidade, o que o desenho se esforçava em transmitir. Com um balde de pipoca, percebeu o que muitas aulas nas escolas são incapazes de passar. E reagiu de maneira espontânea, sem estímulos forçados ou comandos que agradam adultos e os transformam em ventríloquos com amnésia.

O mais importante, no entanto, foi que ele nos apontou qual o caminho para compreender e dialogar sobre o desenho que acabamos de assistir. Coincidência ou não, no dia anterior, Mariana, minha filha de 10 anos, o havia ensinado a regar as plantas da casa. Passo a passo, a lição inclui até a troca de algumas palavras com elas.

Não sei se o menino-ecologista conectou as duas experiências, mas que as duas ideias grudaram como cola, isso é fato. Tanto que Vinicius pediu para repetir as duas coisas no dia seguinte. Quis ver o filme novamente e tratar das plantas. 

Mariana, guardiã incansável do irmão, reagiu a sua maneira. Dez minutos depois que o plantador de sementes explicou como funcionava a agricultura familiar via cinema, ela se sentou em frente ao computador e escreveu, no blog dela, sobre o filme que acabara de ver. 

Talvez Vinicius tenha conseguido plantar, sem ver, outra semente rica em desenvolvimento, que completava o verde que jamais poderia imaginar dentro da minha casa.

Comentários

Beth Soares disse…
Lindo! Bela descrição de uma experiência maravilhosa e inesquecível para mim, também.
Beijo!
Lindo texto! Eu fiquei imaginando a cena de tudo em cada frase lida! Risos... Beijos