Por Natássia Massote
Em Utopia, de Thomas Morus, as pessoas vivem em uma comunidade harmônica, são pacíficos, amáveis e respeitáveis. Não há propriedade privada, todos trabalham poucas horas por dia – mas o suficiente para a produtividade local. Os moradores não usam jóias, os metais “preciosos” são brinquedos para crianças. Aliás, para os pequenos é ensinado a cultivar a terra e a valorizar a educação artística.
Embora o livro de Morus fosse uma crítica ao renascimento cristão europeu, escrito em 1516, podemos tirar lições para os dias atuais e correlacionar com modos de vida e celebração alternativos. E é em uma ilha, precisamente em Cananéia, São Paulo, que vivi meus dias de Utopia.
Entre os dias 27 de dezembro e 03 de janeiro, Ilha Comprida recebeu o festival de cultura, música e arte alternativa – AHO. Idealizado por núcleos conhecidos de festivais trance, o espaço inspirou e expirou a vida em comunidade, de alegria, cumplicidade e amizade.
A música era a principal atração e o festival contou com duas pistas. A principal de trance: um coração pulsante. Da aceleração à desaceleração, a energia impulsionava os pés sujos de lama, em ritos de transcedência, em cumplicidade com os sons rítmicos, com a natureza e com a música psicodélica. Aliás, da psicodelia se tira as experiências mais profundas de vida, dá cores a uma vida rotineira e cansativa em preto e branco.

A outra pista era uma miscelânea cultural – pois, em Utopia, a diversidade é intrínseca. De dia, o público era contemplado com sons étnicos, chill out, reggae. E, durante a noite, dava espaço ao low beats. Essa pista tinha a forma de um globo, e passava o sentido de globalização – globalização musical, cultural, artística e humana.
Além da música, a arte, como mãe, mostra orgulhosamente seus outros filhos. Rituais na fogueira, espaço de cura, aulas de yoga na praia, festejos da comunidade local, capoeira: uma programação cultural riquíssima, que nos faz lembrar de valores outrora esquecidos, de notar a riqueza na multiculturalidade, da produção regional a mundial, na interconexão a que tudo isso leva.
E as crianças? Em Utopia, as crianças despertavam a arte dentro de si, a sua expressão divertida como humano. Na breve Utopia do final de ano, as crianças brincavam, dançavam, pintavam, plantavam árvores. Havia o lindo o projeto de ensinar sustentabilidade – não a tachada pela mídia – aos pequenos. A cada semente que plantavam, a cada desenho que faziam, a cada escrita que liam, as crianças aprendiam uma nova ideia de coletividade e humanidade – no sentido do que “eu humano” sou nessa grandiosa Terra.
Mesmo com a forte chuva, o vento, a lama, as pessoas viviam alegres. Em nenhum outro lugar fiz tanta amizade, vi tantos sorrisos receptivos e generosidade. São histórias de vida – histórias de pessoas que não se importavam em falar “Bom dia”, em emprestar um copo, em oferecer um gole de água ou de contar a sua história. Nos campings, vi uma grande família que, mesmo se conhecendo ali, estava disposta a celebrar a união e o amor como se conhecessem há gerações.
Vivi e senti o desapego. O desapego das comunicações, a falta do telefone, da internet, do transporte. O desapego do conforto, da cama que acomoda, do banho que esquenta. O desapego dos pés protegidos. O contato diário, contínuo, do seu pé na lama, na areia, na pista – bendito os pés que permitiam a dança mágica.
Vi e me emocionei nos rituais dos índios Pataxós. Eles, os descendentes dessa terra, que nunca mostraram rancor por nossos antepassados se alocarem aqui. Eles, que tanto nos ensinam sobre a vida e a nossa obrigação, ligação e função com a natureza. Eles, que nos oferecem aprendizados tão ricos quanto os mais renomados filósofos. E, no Ano Novo, no início da Nova Era, fui contemplada com o belíssimo ritual. E nessa celebração, vi o público, esses jovens da chamada geração Y, dançando juntos, no mesmo ritmo, como esses herois da geração indígena, esquecida e quase exterminada.
Voltando a pista de trance, vi os mesmos índios dançando a música eletrônica. Acredito que eles sentem uma grande complacência com o estilo de som – aliás, os índios sempre pregaram a trasncendência, o som ritmado, o contato com a natureza e o que dela vem. Presenciando tudo isso, pessoas de todo os país, com suas bagagens de vida, suas diferenças e pensamentos, em união máxima de celebração, eu posso dizer: eu estava na ilha de Utopia.
Abaixo trecho de Utopia, de Thomas Morus:
“A natureza, dizem os utopianos, convida todos os homens a se ajudarem mutuamente e a partilharem em comum do alegre festim da vida. Este preceito é justo e razoável, pois năo há indivíduo tăo altamente colocado acima do gênero humano que somente a Providência deva cuidar dele. A natureza deu a mesma forma a todos; aqueceu-os todos com o mesmo calor, envolve todos com o mesmo amor; o que ela reprova, é aumentar o próprio bem estar agravando a infelicidade de outrem.
Algumas vezes o prazer dos sentidos năo provém das funçơes animais que reparam os órgăos esgotados, ou os aliviam de uma exuberância penosa; mas pelo efeito de uma força interior e indefinível que comove, encanta e seduz; tal é o prazer que nasce da música.
Esta moral é boa, é má? É o que năo discutirei; năo tenho tempo para tanto e năo é, aliás, necessário ao meu objetivo; faço apenas história e năo uma apologia. O que é certo para mim é que o povo da Utopia, graças às suas instituiçơes, é o primeiro de todos os povos, e que năo existe em parte alguma república mais feliz."
Comentários
E demonstra bem como não precisamos de muito para criarmos ótimas lembranças!