O cachorro mais infeliz do mundo


Márcio Calafiori*

Faz uns três meses os vizinhos do segundo andar do edifício ao lado resolveram criar um cachorro. Chegou bebê e foi deixado na área de serviço, trancado. De ínício, mais ou menos às 5h30, ele começava a chorar. Gritos agudos, uma faca perfurando os tímpanos. “Daqui a pouco ele vai parar”, eu pensava. Que nada! O animal se lamentava cada vez mais alto. 


São seis e quinze agora. O jeito é levantar, tomar banho, ir para a sala, ligar o rádio do computador e me distrair com alguma coisa. Por volta das sete horas, alguém abre a porta da área de serviço no segundo andar e o animal se aquieta. Parece óbvio, quer companhia.

Não gosto de reclamar de vizinhos. Não tenho sangue de barata, mas tento viver em paz. Por causa do cachorro-bebê mudei um pouco os hábitos. Passei a ir mais cedo para a padaria tomar café. No entanto, sair cedo de casa não é mais como antes. Por exemplo, vou até a farmácia da esquina da Afonso Pena e dou com o nariz na porta. “Só abre às oito”, alguém me avisa. “Nos bons tempos as farmácias abriam às seis”, comento um tanto quanto azedo. “Se abrir às seis, os caras assaltam”, ouço como resposta.

De volta para casa, passo por uma senhora que vem com o cachorro. O cão para e funga alguma coisa no chão. A mulher o repreende: “Lucas, eu já não te disse que não é pra ficar cheirando porcaria na rua?”. Outro dia, quase na mesma esquina, vinha uma moça com seis cães nas coleiras. Deve ser cuidadora. 

Um dos animais ergueu as patas dianteiras, talvez querendo brincar comigo. A moça puxou a coleira a tempo e deu uma bronquinha na cadela: “Ana, você precisa entender que não é todo mundo que quer o teu carinho. Aprende isso!”.

Tudo mudou. A farmácia não abre mais às seis da manhã e os cachorros são tratados como seres humanos. Menos o cão do prédio vizinho ao meu. Ele parou de chorar às 5h30. Mas agora chora intermitentemente várias vezes ao dia. Chora, chora, chora. Passa horas e horas sozinho em casa. Não estaria melhor ao lado da mãe, de quem foi retirado? Trancado, dá cabeçadas na porta da área de serviço. 

Às vezes, o bicho solta um uivo profundo e recomeça o choro. Só fica calado quando o pessoal da casa chega da faculdade. Os meus vizinhos são jovens, parecem formar uma república.

Agora há pouco o cachorro estava chorando. Não aguentei. Entrei no Google, procurei o telefone de alguma entidade protetora dos animais, encontrei um número em Santos e liguei. Só dava ocupado. Liguei para o 190. A policial me forneceu outro número. Liguei, chamou e nada. 

Ah, o controle de zoonoses deve ter um número quente! Por que não pensei nisso antes? Ligo, sou bem atendido, o rapaz do outro lado da linha me passa um número, mas já vai avisando: “Talvez não atenda.” Dito e feito. Mas a minha missão continua. Um dia o Thor vai parar de chorar. Por enquanto, o considero o cachorro mais infeliz do mundo.

* Márcio Calafiori é jornalista. 

Comentários

Unisanta's pupil disse…
Quem gosta de animais não os maltrata. Domesticar é o verbo chave para esse caso. Inclusive o dono. Pois, existe uma diferença de ambiente que realmente implica ao animal domesticado os direitos e deveres. Seguindo esta teoria, no ponto hipocrisia, esse tipo de homem não comeria carne, desapoiaria a indústria alimentícia para carnívoros. No máximo, um peixinho. Como eu, tenho peixes num bom e bonito aquário que eu mesmo fiz. Criei um habitat e o coloquei dentro da sala. Nem foi tão caro, vale a pena. Sempre os vejo e alimento. Não precisam de muita atenção, têm um castelo aquático no meio do ar. Quando eu era pequeno, tinha uma amiga e um amigo cão. Cresci e não sei mais como ser o meu eu criança durante todo o tempo. Adolesci e amadureci. Amargurei. Mas não maltrato ninguém, apenas objetos e insetos peçonhentos. Aliás, pessoas peçonhentas devem se situar ao ler este texto.