Boa noite, dona Amélia!


Márcio Calafiori* 

A senhora tem 70 anos. Nasceu em 22 de janeiro. É um pouco cedo para o inferno astral, que no caso só deveria começar em 22 de dezembro, os trinta dias que antecedem o aniversário. Seja como for, a aquariana que residia em um apartamento de classe média, de dois quartos grandes, naqueles prédios antigos, é a mais nova moradora de rua de Santos.

De primeira, conversando com ela, não a levei a sério. Eu vinha da padaria, e, sem mais nem menos, me abordou:

“O senhor acha justo alguém como eu morar na rua? Eu pareço uma mendiga?”.

Para falar a verdade, não. A senhora não parece uma mendiga. Veste-se esportivamente. Aliás, se fosse minha namorada, talvez entrássemos em conflito a respeito do short que usa, aquele de academia, a blusa decotada... A conversa dela é esquisita. Não, não me sinto incomodado, só quero me livrar, seguir em frente. Mas a senhora insiste:

“O apartamento é meu. Eu cantava... Depois trabalhei na Caixa... Foi o meu marido que trabalhou na prefeitura quem me deixou o apartamento. Agora me botaram na rua, não posso nem pegar as minhas roupas... Hoje tomei banho no chuveiro da praia, lavei os pés e as genitais”.

“Boa-noite”, eu disse.

No outro dia, no bar em frente, eu soube: se chama dona Amélia. Ficou catorze anos sem pagar o condomínio. Já era exaltada, dizia o que lhe vinha à cabeça. Teve um problema de família e em seguida passou a viver só, suspeitando de que a sua casa vivia repleta de vampiros. Por falta de pagamento no condomínio, R$ 200 por mês, teve o apartamento leiloado.

Na rua onde moro, no Boqueirão, em Santos, todo mundo a conhece. Alguns estão revoltados com a situação que enfrenta. Ela passa puxando um carrinho de feira, tenta entrar no prédio, mas trocaram a fechadura.

Dona Amélia tem a voz forte, é sergipana, foi cantora. Fala palavrão, é teimosa. Segundo ela, este é um país de vagabundos e ladrões, que só querem roubá-la. Pedi para conversarmos. Olhou-me desconfiada. Benzeu-me desenhando no ar alguns sinais, pois pareço um daqueles vampiros que quer sugá-la. De tudo o que consegui apurar é possível que a senhora talvez tenha finalmente compreendido, e só talvez, que se meteu numa grande encrenca.

“Não vou dar dinheiro praqueles bandidos, praquele síndico ladrão”, diz.

“Dona Amélia, a senhora prefere morar na rua do que pagar o condomínio?”.

“Todos no prédio querem me roubar. Já me roubaram tudo o que meu marido me deixou, só faltava esse apartamento. Eu tinha casas na Zona Noroeste, me roubaram. O meu apartamento não vou deixar...”

Contam-me os indignados no Bar do Robson que dona Amélia age estranhamente faz anos. Não fala coisa com coisa. Era a moradora mais antiga do prédio. Aí veio a execução.

“Será que ela rasga dinheiro?”, alguém pergunta.

Não sei dar respostas assim na lata. Mas depois de conversar com ela e arrancar, a muito custo, o seu nome completo (ela primeiro fez um sinal com os dedos querendo dizer que eu estava tentando chupar o seu sangue), acho que essa senhora rasga dinheiro, sim. Aqui no bairro, o seu apartamento deve valer pelo menos uns R$ 200 mil. Teria sido arrebatado por R$ 40 mil num leilão. Ela foi executada e ponto final. Não deve ser bem quista pelos vizinhos.

Em plena vigência do Estatuto do Idoso, a senhora passa em direção à esquina, puxando uma mochila com rodinhas. Usa cordões de ouro, pulseiras e relógio. Alerto-a de que assim poderá ser assaltada.

“Me assaltarem? Vem, tenta!”, me desafia.

Pergunto aonde vai.

“Vou procurar um lugar para dormir, de preferência perto de um shopping, onde posso usar o banheiro.”

“Boa noite, dona Amélia!”

P.S: Os amigos do Bar do Robson me informaram ontem que um caminhão veio buscar as coisas da dona Amélia e que ela teria sido acolhida por uma sobrinha, depois de passar mais de duas semanas morando na rua. O caso serve de alerta. Não pagar o condomínio está resultando em despejo.

Sim, tem gente que não paga o condomínio porque não quer; mas existem outras situações, até mesmo por desemprego ou doença, em que somos obrigados a adiar compromissos. A senhora sobre a qual falei não se encaixa em nenhuma dessas situações. O seu caso envolve outro tipo de problema, que mereceria um tratamento mais humano.

* Márcio Calafiori é jornalista. 

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