Batman, um animal globalizado



Os filmes de super-heróis nasceram para cumprir com fidelidade um esquema previsível de entretenimento. A trilogia de Batman, dirigida por Christopher Nolan, foi parida – com consciência ou não – para colocar política e sociedade contemporânea na agenda.

As doses de análise social cresceram ao longo dos três filmes e alcançaram o ápice em “Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge”. Um filme como este possibilita leituras múltiplas, quase que particularizadas. São várias camadas, como diria o ogro Shrek, que assinam várias linhas de discussão, da simples associação às histórias em quadrinhos até a mais complexa teoria sociológica.
Prefiro procurar o meio do caminho entre ambas, sem escorregar tanto no entretenimento puro como no academicismo burocrático. “Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge”, ao diversificar vilões e personagens de apoio, nos dá de presente a perspectiva de uma obra atual, que transforma Gotham City em uma metáfora de Nova York, por exemplo.
O cenário da história, claro, poderia nos remeter a qualquer outra grande cidade do Ocidente, mas as origens norte-americanas não deixam escapar o passado recente de um país que ainda expele forças para se manter na hegemonia política e econômica internacional.
Batman, neste sentido, representa mais do que o justiceiro descontente com a criminalidade. Simboliza as forças de segurança inoperantes diante de um mal pulverizado, quase individualizado e comunicável por tecnologias móveis.
Bruce Wayne (Christian Bale, o melhor ator a vestir a roupa do morcego) é o retrato de quem se decepcionou com a estrutura política e social. O dinheiro dele não dá conta de amenizar os desvios deste sistema; ao contrário, somente o reforça. Wayne cansa de se contentar com pequenas vitórias isoladas, como a administração de um orfanato. Em “Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge”, ele aparece como um eremita, que se afastou por oito anos da máscara que o tornou herói anônimo, tão eficaz quanto contestado.
Wayne resiste em compreender que Batman jamais ocupou o centro das atenções como ser político. O mordomo Alfred (Michael Cane) é a voz da consciência, que não o poupa das verdades com contexto. Christian Bale e Michael Cane travam os melhores diálogos do filme; outro quesito em que “Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge” está bem acima da média.
Batman era, de fato, somente outro elemento na engrenagem, limitado a apagar incêndios pontuais, assim como o comissário Gordon (Gary Oldman), transformado em burocrata diante da política de segurança pública, que mascara uma cidade à beira da implosão social.
Aí entra o papel de Bane (Tom Hardy). Ele personifica o terror. É aquele sujeito de passado desconhecido, objetivo, brutal, selvagem na perspectiva dos moradores de Gotham City. Em certo ponto do filme, é classificado como terrorista. Bane traz, em sua máscara de focinheira, o temor de uma sociedade que só resolve seus conflitos pela violência e que se apavora diante do inimigo desconhecido e sem território. Mais do que isso, necessita de tutores para prolongar o estado de coisas.
Bane traveste, pelo contrário, o falso animal. Coloca em dúvida a liderança de Gotham City, ao desativar a Bolsa de Valores. Nada mais claro como crítica a Wall Street e a crise econômica, marcada pela voracidade capitalista.
Bane é a metáfora moderninha da luta de classes ao promover uma revolução dentro da cidade. Neste ponto, prevalece também o olhar norte-americano, de que as revoluções coletivas são caricaturas de um viés ditatorial. Gotham City, nas mãos de Bane, se torna uma ilha isolada, sob a ilusória descentralização de poder para demarcar o território da vilania. Seria uma Cuba globalizada?
O autoritarismo de Bane é reforçado por mais um exílio (desta vez, involuntário) de Batman, pelos julgamentos à revelia e assassinatos de desafetos do novo modelo de governo, além da criação de uma casta armada e embriagada pelo poder.
Nesta “luta de classes”, aparece a personagem de Selina Kyle, a Mulher-Gato, embora não seja chamada assim. Interpretada por Anne Hathaway, Selina é a Robin Hood da modernidade, com um discurso politizado de diferenças sociais. É claro que, por trás da retórica, está uma mulher sedutora, capaz de dobrar Batman com meia dúzia de palavras, que jamais descarta o prazer individual.
Outro personagem coadjuvante que merece atenção é o policial John Blake, interpretado por Joseph Gordon-Levitt. Ele é a representação do sonho americano. Orfão como Bruce Wayne, ele não teve o glamour em formato de dólares à disposição. Viveu no orfanato sustentado pela Fundação Wayne.
John Blake virou um policial de carreira meteórica, incorruptível e obcecado pelo trabalho. O estereótipo norte-americano repetido à exaustão no cinema. No filme, Bruce e John se aproximaram diante da crise provocada por Bane. De fato, um relacionamento que certamente renderá outros frutos no cinema.
“Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge” é tão rico que pode nos conduzir a outros caminhos além dos personagens em si. O filme aborda a questão da energia limpa, principalmente nas ações da milionária Miranda Tate (Marion Cotillard), que tenta se associar a Bruce Wayne. Ao andar pela estrada ambiental, a trama também vilaniza a energia nuclear, armamento sempre à beira do descontrole.
“Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge” encerra a trilogia com profundidade, ainda que abra margem para outras produções. Christopher Nolan, que nega a politização da história em entrevistas, preparou um roteiro que foge à previsibilidade dos filmes de super-heróis. E, com isso, ressuscitou em Batman um caráter político que, diante da Gotham City nova-iorquina, coloca a trilogia como prato principal para pensar a globalização em que vivemos.
Politizado ou não, “Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge” é entretenimento que vale quase três horas sentado na cadeira. É a versatilidade de uma obra que serve tanto para divertir como para pensar. Basta escolher qual a camada do cinto de utilidades.
Obs.: Texto publicado originalmente no site Cinezen

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