O troco


Neymar esbravejou depois do jogo contra o Bolívar, pela Libertadores. “Vai ter volta”, prometeu o atacante. Era a resposta, de cabeça quente, às garrafadas atiradas da arquibancada, mas principalmente às botinadas dos adversários bolivianos. A surra em doses homeopáticas contou com a omissão da arbitragem e poderia ter consequências físicas mais sérias para o principal jogador do Santos.

Espero, realmente, que Neymar dê o troco na partida de volta, na Vila Belmiro. Mas não da maneira que talvez agradasse ao goleiro Rafael. “Libertadores é guerra”, teria dito o goleiro. Quero acreditar, pelo retrospecto de Rafael, que ele não teve a intenção de incitar a violência contra os bolivianos esta semana. Até porque perdeu seis meses de carreira para se recuperar de uma fratura durante um treinamento no CT do Santos e, portanto, sabe o significa quando a bola vira objeto descartável.

Não, Libertadores não é guerra. Nem os jogadores são soldados que se preparam para a batalha. É uma partida de futebol, na qual o Santos deve dar o troco da maneira que faz melhor. O Santos, com a cabeça no lugar, tem que acuar os bolivianos na defesa. A partir daí, colocar em prática o resultado óbvio: golear e ensinar como se joga. Colocar os bolivianos na posição coerente com o futebol que praticam hoje.

Neymar tem o arsenal suficiente para indicar aos colegas do Bolívar qual é a estratégia para se travar uma guerra sem que o outro perceba que caiu no de joelhos no front onde não há sangue. Dribles, arrancadas, assistências e gols para eliminar o adversário do torneio.

Grandes jogadores convivem com espancamentos. Mas não é possível aceitá-los de cabeça baixa. Revidar, geralmente, beneficia o agressor, inferiorizado tecnicamente. No revide, juízes costumam acordar e punir a vítima, fora de contexto. São raros os árbitros que aplicam cartões por histórico de violência.  

O maior atleta da história do Santos não fugia à regra e apanhava demais, mas era louvado por também saber bater. A cotovelada desferida durante a Copa do Mundo de 70, sem o olhar da arbitragem, foi um recurso de vingança. Mas Pelé tinha consciência de que a melhor resposta eram as vitórias com letra maiúscula. Não há argumento mais consistente do que o desfecho daquela Copa.

Mais do que promessas de revanche, é preciso abandonar esta imagem de que a violência é inerente à Libertadores. De que vencer com dificuldades implica em compactuar ou reproduzir a pancadaria. Basta fazer valer a superioridade dentro de casa. O Santos não fará nada de extraordinário se encurtar o campo pela metade na partida de volta. Como também não foi um absurdo o placar na Bolívia.

Entrar no diálogo da violência beneficia os bolivianos. Ironia, sorrisos falsos de aceitação, talento e técnica sustentam com coerência a distância entre Santos e Bolívar. O estádio lotado, com os torcedores em festa, é o estímulo ideal extra-campo para encurralar qualquer adversário numa Libertadores. É o antídoto que encolherá os bolivianos à condição de aprendizes e de espectadores de luxo na próxima quarta-feira.

Na atual conjuntura, defender a violência como uma qualidade na Libertadores sinaliza atraso, amadorismo, desorganização e, acima de tudo, impunidade para o mau futebol. Cultuar o espírito de guerra favorece as equipes mais fracas, vazias de argumentos para justificar as derrotas previsíveis, anti-artísticas por excelência.

A selvageria ocorrida na Bolívia é o rastro de conivência dos dirigentes da Confederação Sul-americana, perpétuos no poder e mentalmente estacionados nos anos 60. Perdemos a oportunidade de aprender com os europeus, capazes de manter duas ligas internacionais, impecáveis na organização, rentáveis em termos financeiros. Entre as qualidades, a ausência de violência, dentro e fora das arquibancadas. Os deslizes eventuais são punidos com rigor, sejam jogadores, técnicos ou clubes.

Na quarta-feira, espero que o Santos trafegue pelo caminho da obviedade, assim como outros times brasileiros na Libertadores. Além da necessidade de se superar a entressafra que nos aflige, é a hora de aprendermos que organização funciona como alicerce para talento, tática e técnica. E torna, de certa forma, a sorte um ator que beira a figuração.

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