O filho do trânsito


Eduardo (nome fictício) passa a maior parte de seus dias dentro de um veículo de quatro rodas. O modelo e o tamanho do veículo mudam conforme os dias da semana. Mas a rotina padece de inércia. A tortura psicológica contínua poderia transformá-lo em um zumbi de volante e câmbio nas mãos. Mas o transformou em um Homo trafegus.

Esta variação da espécie humana se caracteriza pela alternância entre a serenidade e a selvageria. A serenidade se manifesta enquanto é possível dirigir sem pressa, encarar ondas verdes e não se encontrar com seres em duas rodas ou caminhantes de braços estendidos. Nesta bipolaridade de vias públicas, Eduardo se sente rumo ao paraíso.

A serenidade o impregna cinco dias da semana. Eduardo, na visão antropológica, seria um espécime raro da “evolução” para Homo trafegus. Ele dirige ambulâncias, sintoma que poderia empurrá-lo para a bestialidade no trânsito, com efeitos psicológicos extremos na condução de um veículo.

Eduardo adora estar no comando da ambulância. Ele não trabalha com emergências, acidentes de trânsito e outros problemas que implicam na sirene como o áudio da urgência e do desespero. “É tranquilo. Só transporto médicos e enfermeiras para atendimento em casa, levo pacientes para a realização de exames e consultas e entrego medicamentos.”

Eduardo abandona Dr. Jekill e incorpora Mr.Hyde nos finais de semana. Como segunda renda, ele veste a fantasia profissional de taxista. Em dois dias, o homem sereno sai de cena à fórceps. O monstro ganha carteira profissional 12 horas por dia. Para ele, ser taxista é o pior castigo que poderia sofrer. “Eu odeio taxistas.” A raiva o torna, em tese, capaz de separar o motorista comum de quem, naquele momento de conversa, conduz um táxi como se estivesse na equipe de Felipe Massa em Interlagos.

Eduardo vive aquilo que mais detesta. E a dissociação do ofício foi o mecanismo de defesa para apagar de si o animalesco que xinga pedestres, trata ciclistas e motociclistas como inimigos e encara o agentes de amarelo como a personificação do mal.

Eduardo os exorciza quando fala de sua outra personalidade: o motorista comum. Aí entendemos a ojeriza aos taxistas. “Eles são folgados, não usam seta e estacionam em qualquer lugar. Olha lá (aponta para um colega estacionado em fila dupla na rua Carlos Gomes, no Campo Grande)! Um desses bateu no meu carro e me deu um prejuízo de R$ 1300.”

A cidade, que muda de roupa para se parecer uma cópia menor da irmã Capital, começa a parir – silenciosamente – uma série de filhos. Mudam as feições, alteram-se as naves que os conduzem, mas todos os filhotes são variações genéticas da mesma célula.

Os Homos trafegus não dirigem apenas táxis. Seria uma injustiça generalizar o olhar particular. Estes espécimes conduzem ônibus em jornadas semi-escravas de trabalho. Pilotam motocicletas castigadas com entregas multiplicadas pelo tempo curto. Arrotam status quando passeiam com seus carrões de novos ricos nas portas das escolas. Um ecossistema rico em diversidade e perversidade, prontos para estudos científicos.

Eduardo, enquanto pragueja contra seus colegas, parece não ver saída para si mesmo. Dois anos atrás, havia abandonado o táxi para se dedicar com exclusividade ao oásis das ambulâncias. Ao se tornar pai, as despesas o empurraram de novo para o segundo emprego.

Incapaz de enxergar um horizonte de revolução pessoal, deposita em seu filho a alforria do cárcere de final de semana. “Tenho que esperar que ele cresça. É só virar jogador de futebol. Quem sabe o novo Neymar?”

Comentários

Unknown disse…
É verdade, o trânsito muitas vezes tira de dentro da gente o que existe de pior...rs
Dirigir é bom demais desde que não tenha de se travar uma briga a cada esquina sempre com alguém querendo ter vantagem ou mesmo tentando desrespeitar não só as regras do trânsito como também as leis da física!!!