A ponte do verbo presente



O diretor Eric Steel e sua equipe acompanharam, durante um ano, a movimentação de pessoas na Golden Gate, em São Francisco, nos Estados Unidos. Daí nasceu o filme “A Ponte”, um documentário desconcertante, não apenas por discutir um tema silencioso na sociedade contemporânea.

A Golden Gate é o local público onde mais acontecem suicídios no mundo. No período da gravação, entre 2004 e 2005, ocorreram 24 mortes. O recorde é de 500 mortes em um ano. A equipe de filmagem registrou vários suicídios. Houve também o testemunho de diversos salvamentos. Quando alguém se jogava na água, a equipe de produção do filme avisava a polícia pelo rádio e chegou a ajudar no resgate dos corpos.

A partir das imagens, o diretor e a equipe de produção procuraram familiares e amigos para que falassem sobre o assunto. Os depoimentos são mais chocantes e perturbadores do que os flagrantes das mortes. E o filme segue por esta trilha, com o olhar centrado na relação entre os suicidas e aqueles que ficaram imersos em luto, saudades, raiva e outros sentimentos.

Quem se joga da ponte cai a uma velocidade de 200 quilômetros por hora. O salto acontece a 69 metros de altura. A queda dura, em média, quatro segundos. A chance de sobrevivência beira zero.

A Golden Gate é o local público mais visitado do país. São oito milhões de visitantes por ano. A ponte é um ponto tradicional de romantismo, onde casais se reúnem para marcar casamentos ou celebrar datas de relacionamentos. Um clássico cartão postal pelo tamanho e pelas lendas.

Os entrevistados, em sua maioria, procuram uma explicação racional para a perda. Lutam para entender os reais motivos que as levaram à impotência diante da morte do outro. A morte que sempre surpreende, mesmo que anunciada, declarada, agendada. Todos trazem, em seus depoimentos, a demonstração de esperança de que o suicídio poderia ser evitado. Falam, muitas vezes, como se seus parentes e amigos estivessem vivos, para chegar a qualquer hora. Os verbos são conjugados no presente.

A raiva marca os que ficaram. Culpam-se por não poder ajudar, sentem-se inúteis por não agirem, queixam-se que o suicida não pediu auxílio no momento certo. Mas apontam direções diferentes para enumerar os responsáveis. Um rapaz que perdeu a irmã encontra respostas na religião. Para ele, a garota foi induzida à morte. Haveria um assassino, pois suicídio é inconcebível na doutrina que comunga. A doença dela, esquizofrenia, é ignorada.

Outro depoimento comovente é o de um estudante universitário, único que sobreviveu à queda no período das gravações. O rapaz é portador de Transtorno Bipolar, problema reconhecido pelo pai somente após a tentativa de suicídio.

Um dos entrevistados ensina poesia, sabedoria e serenidade diante do inevitável. Trata-se de uma senhora sexagenária, que perdeu um amigo, Gene, com 26 anos. O rapaz, que aparece em vários momentos do filme, era o típico fã de rock pesado. Sem relação com os estereótipos simplistas, ele falava com freqüência em se matar. Sofreu com os relacionamentos amorosos fracassados. Perdeu a mãe, a única parente. Entrou em processo de autocombustão.

Quando a senhora percebeu que não poderia corrigir a rota do amigo, disse a ele por telefone: - Ao decidir se matar, me ligue e se despeça. Coloque seu nome e endereço num papel e o proteja com saco plástico. Quero encontrar seu corpo!

Escuto sempre que o suicídio é um ato de fraqueza. Como se o suicida fosse um sujeito egoísta que, quando se mata, não pensa no sofrimento que causará aos próximos. Um dos amigos de Gene se sente magoado, traído pela morte dele. O amigo promete cobrar um pedido de desculpas quando encontrar Gene outra vez.

O respeito à atitude do outro deveria ser inerente numa situação-limite como o suicídio. Assim como é necessário compreender as reações de quem sofre uma perda sem explicações. Todos os casos são únicos, indefiníveis ainda que pensemos em inúmeras variáveis. Pode-se, contudo, alimentar-se de suposições e teorias, que servem de ancoradouros.

O filme reforçou minha posição diante do tema. O suicídio é, acima de tudo, um ato de coragem. Um ato de doação, em certas circunstâncias, mesmo que aparente o descontrole emocional. Tenho a impressão, ao ver o filme, que muitos dos suicidas preferiram machucar a si em vez de ferir pessoas próximas, seja pela doença, seja pelo deslocamento de mundo.

O suicida pode gritar por socorro, mas também pode emitir um grunhido surdo, voltado para o próprio interior, sem efeito, sem resposta, sem ressonância. A questão é que, quem fica, tem o direito de tentar entender. È uma decisão louvável, parte do luto. Quem fica precisa se reposicionar, cobrir a perda, amenizar a falta.

Talvez o principal mérito deste documentário seja escapar da tentação de cultuar a morte ou aprisioná-la via parentes e amigos. As acusações de sensacionalismo me pareceram naturais, diante de uma controvérsia superficial de mídia. Acima de tudo, “A Ponte” respeita o luto e transfere aos espectadores a responsabilidade de pensar ou relembrar o tema. Sem jamais cultivar a presunção de explicá-lo.
 

Obs.: Este texto foi publicado originalmente no site Cinezen

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